I – Do
ponto de vista da estrutura
II – Do ponto de vista semiótico
III – Do ponto de vista da circulação
IV – Do ponto de vista do dispositivo : neurónios, papel,
circuitos electrónicos
1. Entre os numerosos
usos sociais que as sociedades como as nossas transmitem de geração em geração [1],
renovando-os sem dúvida e acrescentando-lhes invenções novas que se tornarão
usos a transmitir também, poderemos distinguir os que têm finalidades técnicas
de habitação de outros usos, como os quatro enunciados no título, também se
reproduzindo de geração em geração e muito mais se alterando ainda porventura,
cuja especificidade poderia ser dita talvez como Alain do mimêma pictural: “uma
inscrição numa matéria de empréstimo”[2]. Esta matéria
de empréstimo, acrescentaria eu, pode ser quer sonora, quer visual quer táctil (Braille). Com efeito, a
linguagem oral – enquanto sistema de diferenças linguísticas, os significantes – inscreve-se na
matéria sonora que ela re-elabora, tal como a escrita e as imagens (pintura,
desenho, fotografia, filme) em superfícies visíveis, a música sendo ainda um
outro exemplo de inscrição sobre matéria sonora.
2. Estranhamente,
estas diversas “inscrições numa matéria de empréstimo”, estes usos que não
são como os outros, não parecem ter um nome comum, como se a cultura ocidental
não tivesse dado pelo que as liga enquanto usos semelhantes[3]. De certo modo,
também são técnicas que implicam saber e habilidade, inscrições de habitação que sobrevivem à morte das
gerações, à maneira dos utensílios, dos diversos edifícios, do urbanismo, etc.
Mas estes são “inscrições numa matéria”, como dizer? específica para funções
de
habitação determinadas,
muitíssimo variadas segundo as sociedades: ‘matérias funcionais’, digamos, não se poderia
falar de empréstimo a seu
propósito. Todavia estas palavras, ‘técnica’, ‘habitação’, ‘uso’, podem fazer pensar em ‘instrumentos’ ou em ‘coisas’, ou
até em ‘meios’, e é isso que as inscrições não são de forma nenhuma: sendo aquilo de que se ocupam a escola e o
que se pode chamar instituições de circulação cultural, elas são na verdade os únicos ‘produtos’
– e isto serve para precisar um pouco mais esta noção comum – que podem deixar
a sua “matéria de empréstimo”, serem transformados em electricidade e enviados
a longa distância (‘tele-’) e
voltarem de seguida à sua “matéria de empréstimo”, os únicos assim susceptíveis de serem manipulados por
computadores, de circularem na Teia
global[4].
DO PONTO DE VISTA DA ESTRUTURA
Linguagem duplamente articulada: poema e definição
3. Para delimitar a
diferença entre a linguagem duplamente articulada e as outras formas de inscrição
socialmente duráveis, ocupar-me-ei aqui um pouco do texto poético, aonde
encontramos a linguagem (oral e escrita) na sua maior força e complexidade.
Diria de modo aproximado que se chama poema a um texto em que, por razões
intrínsecas, não se pode separar o jogo significante – sonoridades rítmicas e aliterantes – do
jogo do sentido ou do pensamento, nem tão pouco separar oralidade e escrita[5]. Poder-se-á
objectar que qualquer texto é uma tal impossibilidade; é certo, mas o poema é o texto em que
esta resistência é, de certo modo, mais visível, mais palpável, no sentido em
que ele resiste à tradução exacta, à paráfrase, ao resumo em que se perde
enquanto esse texto, esse texto-pensamento. Dito de forma mais técnica, o
poema é o texto que joga a fundo com a unidade da dupla articulação da linguagem humana (Martinet), a dupla
economia da repetição de diferentes
significantes, entre os fonemas/letras e as
palavras, por um lado, entre as palavras e as frases/textos, por outro, com a unidade
indissociável do significante e do ‘signifié’, termo inventado por Saussure
para o distinguir de ‘signification’, significado lexical que reenvia para o
chamado referente.
4. Assim, por exemplo,
um poeta terá a possibilidade de jogar com as diferenças significantes de basta,
bastante, bastar, bastão, bastardo,
besteiro, besta, bosta, busto, bispo, bicho, palavras próximas nos
seus significantes e cujos sentidos podem aproximar-se ou não entre eles; este
tipo de jogo é bastante diferente no entanto do que há entre os opostos como bastante
/ pouco,
por exemplo. É um jogo que pertence àquilo a que Derrida chamou disseminação,
de que faz parte também a polissemia, segundo a qual o mesmo significante muda
de ‘signifié’ (Belo, 1991a) segundo o contexto em que se insere, quer se trate
de uma palavra ou de uma citação mais longa. O poema seria pois um jogo
pensante de disseminação, seja
qual for a consciência que o poeta tenha disso.
5. Uma outra
consequência da disseminação numa linguagem duplamente articulada, é a
impossibilidade de dar uma fronteira ao poema: a sua escrita ou leitura implica
relações essenciais a outros textos, poéticos ou não, quer ao nível fonético e
das palavras, quer ao da sintaxe-semântica e dos códigos textuais[6]. Sem esta
relação – susceptível de uma
certa transgressão –, que se constrói
a partir das leituras e falas
anteriores do poeta e que é rigorosamente incontrolável por ele, nenhum poema
seria legível. Como qualquer texto que seja, sem cisões possíveis. Mas é sem
dúvida também o caso dos outros jogos de
inscrição, a escrita matemática sendo aquela que melhor se defende da chamada
intertextualidade.
6. As ciências e a
filosofia não teriam sido possíveis sem uma arma de defesa contra a polissemia
(tão importante para o narrativo
e o discursivo, os textos que dizem o acontecimento e a experiência singular, respectivamente): essa arma foi a
definição, criação de fronteiras à volta da polissemia da palavra definida para
não reterem senão um só sentido. O mesmo é dizer que os textos gnosiológicos
jogam em sentido inverso da poesia:
eles privilegiam o ‘significado’ assim definido, o conceito (a ideia, a representação mental europeia
tem aí a sua origem), e desconfiam do significante, do seu jogo de
disseminação, das palavras que mudam
segundo as línguas. Esta forma de fazer tende para a universalidade, uma das
suas incidências é a exclusão para fora das suas fronteiras de qualquer marca
singularizante: ‘eu’ e ‘tu’, ‘aqui’ e ‘agora’, o ‘presente’ e o ‘aoristo’, os
tempos e os modos dos verbos (Benveniste, 1966, Belo, 1991a). A invenção do
texto gnosiológico – o dos saberes filosófico,
lógico e científico – foi assim uma ruptura com as narrativas e os discursos
situados temporalmente e espacialmente; é a escrita do que valerá unicamente
pelas suas definições e argumentos, tanto faz quando, tanto faz onde, tanto faz
para quem. Trata-se de ficção, já que ao
compor-se como intemporal e válida em qualquer lugar, ela denega a sua própria situação de
escrita. Sem dúvida que nós nos tornámos mais modestos nas nossas pretensões ao
conhecimento científico, que sabemos ser histórico e relativo, no entanto, esta
estrutura gnosiológica dos textos
científicos continua a ser necessária, definidora da ciência como projecto de
saber, aberto há vinte e cinco séculos pelos Gregos. Desde o “que ninguém entre
aqui que não seja geómetra” inscrito no
frontispício da Academia de Platão até à fenomenologia do matemático Husserl,
passando por Renatus Cartesius, aquele que geometrizou a álgebra com o seu sistema de coordenadas, por Kant
o newtoniano e por alguns outros, o privilégio filosófico do conceito teceu uma
aliança, cheia de “finesse”, com as matemáticas, com “o espírito de geometria” pascaliano.
A escrita matemática
7. A escrita
matemática não é duplamente articulada: contra o que parece à primeira vista,
ela ignora o nível fonema / letra. Sem dúvida que o seu nível mais elementar só
conhece, por regra, um único carácter, mas ele corresponde às palavras da
linguagem duplamente
articulada, já que ele tem um sentido[7] atribuído
convencionalmente por uma
definição prévia, feita aliás em discurso duplamente articulado (por exemplo, “R é o raio de
uma circunferência”). A
matemática só conhece pois um nível, o que articula palavras e frases (equações). Por exemplo, a equação
da circunferência cujo centro está no cruzamento dos eixos das coordenadas Oxy (2 é expoente, x ao quadrado, etc)
x2
+ y2 = R2
As equações podem ser transformadas, segundo regras
sintácticas codificadas,
_______
x2
= R2 – y2 e x= ± V R2 – y2
por exemplo, de modo a que estas equações sejam
equivalentes. Isto implica que uma equação (ou um sistema de duas ou mais
equações, isso não altera nada aqui) seja fechada em relação a outras, que
possuam outras definições convencionais (R pode ser a resistência eléctrica em equações da
Electro-estática, por exemplo). A matemática não
forma pois texto a outro nível que não seja o das suas frases (as suas
equações), pelo menos se definirmos texto como uma sucessão de frases relacionadas
entre elas mas que não se repetem quanto ao sentido. Tudo isto implica que a
matemática tenha só uma articulação, e esta é uma primeira boa razão para que o
termo ‘linguagem’ não lhe convenha em rigor. Ao contrário da linguagem duplamente articulada e radicalmente
imotivada, o significado matemático
é, de jure,
prévio (na língua do matemático) ao significante, este sendo justamente uma
convenção: portanto nem polissemia nem disseminação (excepto em caso de erro)
por definição da convenção
matemática, concebida para evitar todo o efeito polissémico. Quer isto dizer
que ela foi concebida para ser monossémica,
unívoca, em suma exacta. Estou a descrever a sua finitude, a sua
positividade, e não defeitos! Ela é também exaustiva, o que o
discurso duplamente articulado, estruturalmente elíptico, não pode ser: não se
pode nunca dizer ‘tudo’ sobre o que quer que seja.
8. A matemática foi
também concebida para ser exclusivamente operatória, o que lhe vem de uma característica
sua, a de ser composta por caracteres, quer dizer, de ser essencialmente uma escrita, implicando os
olhos, as mãos, um lápis, o papel ou similar, em suma os instrumentos da matéria de inscrição; se somos capazes
de resolver mentalmente certas
operações simples, isso não é no entanto verdadeiro para a maioria dos casos –
multiplicar 3197 por 7913, achar a raiz quadrada de 7 ou de 23, resolução de
equações, etc. –, que se tem que fazer estruturalmente
por escrito. É certo que ela tem necessidade, na colocação dos problemas, na condução das suas
operações e na interpretação dos
resultados, ela tem necessidade da oralidade da linguagem humana, que lê ‘dois
mais dois é igual a quatro’ em 2+2=4. Mas esta oralidade não joga na operação
matemática, que é exactamente a mesma para um português ou para um japonês.
Puramente convencional – quer
dizer que ela exige línguas duplamente articuladas a montante e a jusante – , a
escrita matemática é universal em relação a essas línguas, ela não precisa de
ser traduzida: 3 197x7 913 = 25 297 861, é igual para portugueses e franceses e
não é a mesma coisa que ‘três mil cento e noventa e sete vezes sete mil
novecentos e treze é igual a vinte e cinco milhões duzentos e noventa e sete
mil oitocentos e sessenta e
um’ em português, porque em francês diz-se ‘trois mille cent quatre-vingt diz
sept multiplié par sept mille neuf-cents treize est égal à vingt-cinq millions,
deux cents quatre-vingt dix-sept milhe, huit cents soixante-un’. Sendo operatória, ela não é pois
‘pensamento’ no sentido corrente do termo, o qual só funciona nas línguas
duplamente articuladas; estas no entanto são necessárias para estabelecer as
convenções das características matemáticas, talvez não para ‘seguir’ as operações (os
computadores calculam ‘sem língua’). E é uma outra boa razão para que o termo
‘linguagem’ não lhe convenha em rigor.
9. O que são então as
‘palavras’ matemáticas, com as quais se escrevem as frases-equações? Há
caracteres sintáxicos, os que indicam as operações (+, =, o traço das fracções,
os expoentes, f(x), etc.), segundo regras exactamente convencionadas[8]. Depois, há
duas espécies de caracteres semânticos: primeiro, os algarismos[9]. Nós usamos
nove, segundo o sistema decimal árabe, ao qual por razões de economia, se
acrescentou o algarismo vazio 0, para preceder o primeiro e fazer o décimo como
10 (e mais adiante o 20), depois faz-se seguir duas vezes o primeiro como 11,
etc., de modo tal que os números de vários algarismos parecem uma palavra com
vários caracteres, não sendo de facto mais do que uma convenção para as
operações de adição (741=700+40+1)[10]. Os números
inteiros definem-se a partir dos números elementares (os dedos da mão) por
adição de 1 ao anterior (n+1), os
outros por divisão ou outra (1/3, raiz quadrada de 2, etc.). Em seguida, as
letras. Estas podem ser constantes (a substituir por um número que, num
problema concreto, tal como R para uma circunferência dada, é sempre o mesmo) ou variáveis (que são também
para substituir por números, como x e y no exemplo: para cada valor de y
encontra-se, pela resolução da equação, dois valores simétricos para x, o
conjunto dos números que assim achamos permitindo o desenho da circunferência
em questão). Quer dizer, as letras em matemática valem por números, conhecidos
ou “incógnitas”, e a resolução de uma equação consistirá, como tendência pelo
menos[11], em chegar a
resultados numéricos pela substituição progressiva e regrada das suas letras.
10. O que é então uma
equação (ou um sistema de
equações)? É uma frase–texto, cuja constelação das variáveis define
um tipo de problemas a resolver. E nisso se basta, nisso ela é exacta, é
bem a sua finitude, a sua fecundidade. Por exemplo, na ciência
física, a cada variável corresponde uma dimensão mensurável segundo padrões
convencionados (metro, segundo, grama, ampère, etc.), as medidas
de experimentação dando os números
que permitirão a resolução dos problemas[12] da região da
física à qual a equação pertence. Em matemática, como nas ciências que a
utilizam, os problemas são isolados uns dos
outros, como as suas equações: trata-se de fragmentos operatórios.
Como se disse, que as matemáticas não permitem elaborar textos. A resolução de
um problema matemático consiste em transformar
uma frase, uma equação (ou um sistema de várias equações), noutras frases ou
equações rigorosamente equivalentes. Nomeadamente as letras, constantes ou variáveis, devem
ser adequadas a cada caso (pelo menos numa região restrita da física, da
geometria ou outra). Sem o quê
depressa se esgotariam as letras dos alfabetos latino e grego. Em resumo, as matemáticas
são essencialmente fragmentárias : cada equação (ou sistema de equações)
é autónoma em relação às outras[13].
As imagens
11. É o quê, uma
imagem, precisamente? Já Platão punha a questão no Sofista, as imagens (eikona) como os
discursos (logoi), para saber como podiam ser falsos. Como podiam
os Sofistas enganar os jovens? (234c). Para responder, ele introduz, em vez da
oposição exclusiva (de Parménides) entre ser e não-ser (ou é um ou é outro), a
diferença não exclusiva entre o mesmo e o outro (diferenças susceptíveis de mistura recíproca, de terem algo em
comum). O que nos permitirá dizer que, a imagem sendo outra do que a coisa de
que ela é a imagem, ela é ao mesmo tempo o mesmo do que essa coisa (sem
o quê ela não seria uma imagem de, não seria nada, apenas
riscos feitos ao acaso) e o seu outro (a sua imagem, visto que se
separa dela, se desloca para outro lado, pode sobreviver-lhe, etc). A imagem
é e não é a coisa[14]. Imagem
verdadeira, se a sua composição – a mistura das cores e das linhas e
nomeadamente as suas proporções – permanece a mesma do que a da coisa, falsa se
não for esse o caso. Como para o discurso, que é o
que de facto interessa Platão neste texto: aqui a mistura é dupla (assinalada aliás em passos
diferentes do texto), entre letras para
construir palavras (e esta mistura depende de uma arte e das suas regras, não é
de qualquer maneira) (253a), entre nomes e verbos para fazer uma frase
(262a-b): se a mistura é boa, adequada ao que ele diz (“Teeteto está sentado”),
o discurso é verdadeiro, se não (“Teeteto voa”), é falso. O mesmo é dizer que
Platão, para fazer a distinção decisiva entre discurso verdadeiro e discurso
falso, põe o dedo na dupla articulação da linguagem, o que nos permite estabelecer uma diferença entre imagem e discurso: este
articula-se duplamente a partir de elementos (fónicos: os fonemas, ou gráficos:
as letras) que não são imagens de nada, que permanecem
absolutamente imotivados em
relação às coisas que as palavras designam ou nomeiam (como as diferenças entre
as diversas línguas atestam). É esta dupla articulação que permite à linguagem,
ao discurso, produzir sentido,
pensamento. Também o nome é e não é a coisa nomeada, mas de um modo muito diferente do das
imagens: o mesmo nome “cão” pode designar cães bem diferentes, para designar
‘este’ cão, são-lhe necessários determinantes (artigos definidos,
demonstrativos) no discurso. Não a
imagem: a de um cão, é a deste cão (quer ele exista ou não, pode
tratar-se de um desenho inventado)
e mais nenhuma outra. Toda a imagem é singular. Mas não pelo facto do
seu objecto ser particular (os
discursos também falam habitualmente de objectos particulares): podem fazer-se centenas de fotografias
ou de desenhos de uma mesma personagem, com enquadramentos e perspectivas
diferentes, cada uma destas imagens é singular (do mesmo modo podem dizer-se ou
contar-se numerosas coisas desse mesmo personagem). A imagem não tem
articulação (como têm a linguagem, a matemática e a música), motivo que implica
linearidade e discreção; não é susceptível pois
de comutações, não consistindo senão na sua visibilidade, na sua ‘imagética’[15] (o que se ‘vê’
numa imagem, o seu conjunto de traços-cores-sombras na superfície) ; uma
imagem não é ‘resumível’, não é traduzível nem transferível para outra coisa, ela não é susceptível de polissemia,
não tem sentido, não tem pensamento discursivo. Ela basta-se a si mesma, não pede outras imagens para ter
sentido de imagem, mais frequentemente uma legenda dizendo o contexto: é uma
legenda de narratividade, dita ‘guião’ quando ‘guia’ uma sequência fílmica de
imagens. Quanto ao discurso (o do
guião, por exemplo), este relaciona-se com a imagem do mesmo modo que com a
coisa: ela pode ser nomeada, descrita, permanecendo outra do que o discurso que
a diz. É sem dúvida por isso que as tentativas semióticas sobre as imagens têm,
ao que parece, bastante dificuldade em se estabelecerem[16].
12. Não há imagem
‘pura’. Por um lado, não há imagem senão em composição, em contexto de imagens,
num plano, como se diz em linguagem cinematográfica, este contexto sendo
habitualmente delimitado,
enquadrado num rectângulo (a escultura é outra coisa); o jogo das diferenças
contextuais entre as diversas imagens de um mesmo plano tem efeitos sobre as ‘imagéticas’ respectivas que
mudarão se o plano muda, se uma das imagens se desloca para outro contexto.
Quer isto dizer que um realizador, tal como um fotógrafo ou um pintor, joga com
as suas imagens enquadrando os seus planos (perspectiva, grande plano ou
panorâmico, luz, etc.), já que o rectângulo-clausura exclui sempre muitas
imagens do contexto da realidade filmada ou a pintar. Como joga também com elas
em relação ao contexto das sequências de planos, tanto no jogo da câmara como
no da montagem. Não há pois imagens-em-si, não há senão planos de imagens e sequências de
planos. Compor um quadro,
uma fotografia, um filme, é sempre seleccionar
entre numerosas possibilidades. Desenhar uma imagem sem contexto, sozinha, ou
apagar o seu fundo numa fotografia, não é senão uma dessas possibilidades.
13. Por outro lado,
não há tão pouco imagem ‘pura’ por ela sempre implicar, no seu contexto de
planos, jogos de forças, de afectos, de conflitos e de amores, de desejos e
rivalidades. Nós não temos imagem de nós mesmos: o nosso retrato, olhamo-lo
‘como’ o de outro que não conhecemos ‘tal’ como a imagem no-lo mostra. A imagem
é sempre imagem de um outro de que se visa a face, o visto, o aspecto, o eidos, diziam os
Gregos. Tomemos de Rorty o exemplo aristotélico do conhecimento que se pode ter
de uma rã que se olha. Recebe-se o seu eidos, a sua ‘forma’, sem no
entanto nos tornarmos numa rã (como acontece à cria desta rã, que também dela
recebeu o eidos). Mas tornamo-nos de algum modo rã por este eidos recebido, quando
reconhecemos, com um mínimo de familiaridade, outras rãs. A rã dá-nos a sua
imagem, que se torna uma ‘parte’ de nós, do nosso ‘imaginário’ como se diz, ela
agarra-nos, prende-nos, liga-nos, como o sabemos quando sonhamos com ela, quer dizer, quando uma imagem de
rã (compósita talvez, deformada,
pouco importa) vem, de nós e em nós, com uma nitidez e uma intensidade extraordinárias, tomando
a iniciativa, se pode dizer-se, movendo-se, fazendo ruídos, etc. A coisa dá-nos
a sua imagem e prende-nos a ela, modifica-nos com ela. Mas a rã encontra-se numa
bela pedra, na margem do rio onde assim fomos captivados pela rã como o
Principezinho, e eis que nos tornamos pedra, rio, que nos separamos da rã: a
sua ‘imagem’ permanece grafada em nós, fica ‘nós’, sem perder a rã (senão já
não seria uma imagem), mas perdendo-a na sua empiricidade real, reduzida, em
linguagem de Husserl; a rã ‘morre’ para nós, esta ‘morte’ sendo a condição da
sua sobrevivência em nós, tornada memória-nós. Porque o nosso saber, o nosso
conhecimento no que respeita às coisas, às pessoas, é constituído pela amálgama
dessas imagens-nós. Tomei o exemplo da rã, parece evidente que tudo isto é
ainda mais forte nas nossas relações com os outros humanos, tecidas de desejos,
de afectos, de rivalidades, etc., aos quais estamos ligados por essas imagens-nós,
são elas sobretudo que vêm sonhar nos nossos sonhos.
As músicas
14. Apesar da minha
ignorância, é interessante caracterizá-las para chegar a uma consideração geral
deste conjunto assaz heterogéneo “de
inscrições numa matéria de empréstimo”. Tal como a linguagem oral, também ela é feita de
diferenças-repetições sonoras, que se dão numa linearidade sucessiva (de espaço
e de tempo, de retenção e de anticipação), a da melodiavel intermediário, o das palavras. Com efeito,
as ‘notas’ são sons elementares (não
segmentáveis) que não são imagem de nada; todavia, em vez das modulações da voz
que fala (aperto maior ou menor da glote, vibração das cordas vocais, posições diversas da
boca...), a música joga nas diferenças-repetições temporais dos sons em
extensão (breve, colcheia, fusa,
etc.), os seus intervalos, ritmos e outras medidas, nas diferenças-repetições de frequência, entre grave e
agudo, da escala musical (dó, ré,
mi...), nas diferenças-repetições de timbre (espectro-harmónico, mudando
segundo as vozes e os instrumentos) e de amplitude (intensidade dos acentos). Essas
diferenças-repetições sonoras não se prestam a formar palavras que reenviassem
a outra coisa que não a música; é o que permite também a harmonia, parece-me, a
simultaneidade de mais
duma linha melódica, o que a linguagem oral exclui firmemente, sob pena de não
haver comunicação. E permite também o
canto, combinação da linguagem oral e da música numa só sucessão sonora em que
se inscrevem os dois tipos de diferenças ; se se imagina o canto por uma
voz que não seja acompanhada por um outro instrumento musical, dir-se-ia que é
a própria palavra que é musicada pela melodia: os mesmo sons e no entanto dois
registos de diferenças.
15. Estas indicações
muito simples permitem compreender uma diferença capital da música em relação
aos outros jogos de inscrição: só ela é
rigorosamente imanente, não valendo senão pela arte da sua composição (e da sua
interpretação), susceptível de muitas espécies de músicas diferentes. Excepto
talvez para as correspondências entre
músicas e emoções, devidas às cumplicidades entre as oscilações de umas e outras, a imanência faz da
música uma arte ‘abstracta’, como se diz, logo universal por direito, ‘a arte’
sendo o que nela nos ‘co-move’.
Um quadro quase sinóptico
16. Para concluir, tentemos uma comparação
quase sinóptica entre estes diversos jogos de inscrição, colocando-os numa
tabela oferta a um olhar (a uma óptica) de conjunto (sin-). ‘Quase’, porque
encontramos aí dois que só dizem respeito à sonoridade. Por outro lado, entre
aqueles que respeitam à visibilidade (e por vezes ao tacto: o alfabeto Braille
testemunha-o, e ainda a escultura), as imagens destacam-se em que, jogando na superfície ou plano,
elas não se articulam segundo a
linearidade, não são susceptíveis de segmentação em elementos simples e
discretos; o que é sem dúvida a razão pela qual elas são singulares.
Ter-se-ia assim um quadro das possibilidades de articulação de unidades discretas
segundo a linearidade: a linguagem oral e
duplamente
articulada, entre fonemas, palavras e frases, a escrita matemática que se articula entre palavras e
frases, a música entre fonemas e frases, as imagens enfim que não se articulam linearmente[17]. Em relação ao
que é próprio da escrita, poder-se-ia encarar os seus diversos espécimens históricos segundo um percurso completo deste quadro. As imagens da pintura e do desenho seriam as primeiras escritas conhecidas, os hieróglifos a passagem a figuras podendo significar (os discursos sobre) as
coisas visíveis numa sequência linear;
os caracteres chineses
corresponderiam aos da matemática, cada ‘conceito’ sendo significado pelo
seu carácter, de tal modo que, ao que parece, a mesma escrita pode servir para
dialectos diferentes, que nem
sempre se compreendem entre eles[18]. O alfabeto chega enfim à dupla articulação e à sua capacidade de dupla discreção, que
lhe permite descrever as coisas. Quanto à música, fica à parte, na sua imanência altiva, mas encontrou também uma escrita que lhe é tão adequada que os seus sons são designados através
desta notação, como ‘notas’. E é assim que o quadro se pode tornar sinóptico.
17. As quatro casas
deste quadro parecem irredutíveis entre elas, a música sendo, ao que parece, a
que mais resiste a qualquer tentativa
das outras inscrições que quisessem dobrá-la: não se pode ‘dizer’ uma música,
nem desenhá-la, colori-la, filmá-la; ela presta-se no entanto a um certo
tratamento matemático, desde os Gregos. A linguagem pode ler as equações
matemáticas (sem as substituir, como
vimos), pode descrever as imagens mas pondo em sucessão o que se dá numa composição simultânea e
deixando sempre muitos restos, dado o seu carácter elíptico estrutural (quer
dizer que a linguagem se comporta face às imagens como a qualquer outra realidade). A escrita matemática
conseguiu formular proposições
lógicas, como já o tinha feito para as figuras geométricas (cartesianismo) e
parece estar à medida de fazê-lo doravante para qualquer imagem electrónica
(imagens ditas numéricas: decomponíveis segundo
pontos e recomponíveis, sem que elas se tornem todavia unidades discretas).
Enfim, se as imagens, cinematográficas por
exemplo, conseguem, de uma certa maneira, redobrar as narrativas, os discursos
não lhes resistem menos. “Eu perguntava-me em que é que ela acreditava ao
certo” ou “a essência não é visível dela mesma, por definição”: não haverá
nestes enunciados uma única palavra susceptível de ser substituída por uma ou
várias imagens.
18. A linguagem oral
tem um privilégio, sem o quê o logocentrismo
seria irracional: é o único destes jogos que é organizado segundo um retiro no próprio sistema (os
fonemas), tendo se lhe juntado historicamente
os alfabetos (letras). Daí que ela seja a única a jogar um papel estrutural na reprodução de todos os outros usos
sociais, incluindo imagens, músicas e matemática; daí também que só a escrita alfabética tenha permitido historicamente
o texto gnosiológico da filosofia, lógica e ciências, onde no entanto as figuras geométricas e
astronómicas pelo menos, e a
aritmética jogaram um papel irredutível à dupla articulação. Privilégio também pelo facto de toda a
gente falar esta linguagem oral,
segundo a sua autonomia singular, enquanto que os outros jogos exigem
especialistas mais ou menos dotados. Mas este privilégio tem um preço grande:
sendo a única universal no sentido que acabamos de dizer, de que toda a gente tem parte
nela essencialmente, ela é a única que não é universal de direito: varia
segundo as comunidades, segundo
os povos, o que a torna útil dentro da cada comunidade é o que se torna obstáculo entre
comunidades estrangeiras. O que o retiro doa, a autonomia de cada um na
comunicação, também lhe tira. É um escândalo para a razão: todos os outros
jogos de inscrições são por
direito universais (embora obstáculos culturais podendo apresentar-se de facto). Foi contra este
escândalo de Babel que a razão europeia inventou a representação.
19. O quadro deixa-se
ler também segundo a economia da verdade –
respeitante à relação com os outros usos – e da liberdade – respeitante à
composição segundo regras. Designemos os diversos níveis das unidades lineares (abaixo da composição
do discurso ou da melodia): o nível mais baixo é o das unidades imotivadas em
relação a outras coisas, o nível intermediário é o das unidades de referência,
o nível da frase enfim é o das unidades que fazem sentido. A liberdade seria
máxima na música, sem unidades de referência, dependente apenas do sentido das
frases musicais e do jogo de composição da melodia: a sua imanência, excluindo qualquer relação de verdade
com os outros usos, interditaria uma
qualquer ‘objectividade’ do erro, que não poderia resultar senão de falhas de gosto antropológicas,
respeitantes às regras estéticas de composição; não haveria pois também
mentira, toda a música sendo estruturalmente ficção. As matemáticas estariam
nos antípodas. Sem unidades imotivadas, as suas unidades de referência têm uma
relação estritamente definida pelas suas convenções ao uso de contar unidades
ou de medir: as suas regras derivam dessa relação e jogam de tal maneira que
não há praticamente liberdade que não
seja ‘erro objectivo’. Por razões que parecem inversas, porque aqui a exactidão
torna mínima a ficção (excepto nas convenções
de invenção), também não haveria mentira nas matemáticas.
linguagem oral
|
escrita
matemática
|
música
|
imagens
|
unidades
de sentido |
frases
|
equações
|
frases musicais
|
ø
|
unidades
de referência |
palavras
|
números
medidas
|
ø
|
imagens
|
unidades
imotivadas
|
fonemas
|
ø
|
‘notas’
|
ø
|
sonoridade
|
sim
|
ø
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sim
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ø
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visibilidade
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ø
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sim
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ø
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sim
|
escrita
que redobra |
alfabética
|
caracteres chineses
|
notação
musical
|
pintura
hieroglifos
|
relação
a outros usos |
imotivado:
qq. uso |
motivado: contar, medir
|
imotivado:
imanência
|
motivado: usos
visíveis
|
20. A relação
referencial das palavras da linguagem e das imagens às coisas (muito variáveis)
implica nelas um outro registo da questão da verdade. Como argumentei noutro
lado[19], a capacidade
de dissimulação é necessária à autonomia pertinente de cada um, à sua
liberdade, o que implica portanto capacidade de mentir, de guardar segredos, de
fazer ficção, cada sociedade dando-se os seus critérios de verdade, morais
antes de mais (a mentira que prejudica outros destaca-se do erro), estéticas
também nas duas modernidades[20], em relação à
liberdade de
composição poética e literária. Foi a fotografia que introduziu uma alteração
notável desta questão no que tem a ver com o mundo das imagens (na pintura dita
abstracta não há imagens, ela não é aqui contemplada): enquanto que a vrdade ou
mentira da pintura havia já suscitado dúvidas éticas a Platão no Sofista (235e-236c), o
carácter maquinal e químico da fotografia, a química da luz, produz um efeito
de real (R. Barthes, La chambre claire), implica a convicção
forte da sua verdade, apesar das manipulações possíveis (tudo somado
relativamente raras). “O que é visto no papel aconteceu realmente: é um
atributo essencial da fotografia analógica”[21]. Enquanto que
no cinema, a artificialidade dos
cenários, as escolhas de planos e os seus cortes, o jogo de elipses, a montagem
e outros elementos da composição dos filmes depressa mostraram que ele relevava da ficção, com
possibilidades de truques, de erros e de mentiras, como a pintura desde sempre.
Artificções
21. Seria preciso
ainda perguntarmo-nos – os músicos pretendendo sem dúvida que a sua música se
relaciona com o mundo, com a vida, seja qual for o modo de falar deles –, seria
preciso pôr a questão de saber que verbo (descrever, dizer, narrar, contar,
figurar, evocar, cantar... o mundo) poderia dizer a relação destes quatro
‘tipos’ de usos não como os outros, destas inscrições em matérias de
empréstimo, aos outros usos e coisas. Sem nome comum, sem verbo comum tão
pouco? Em resumo, a linguagem é um modo de dizer as coisas, a matemática de as
contar e medir, a pintura e o cinema de as imaginar, a música enfim de as fazer
cantar.
22. Renunciemos pois a
encontrar um verbo comum, mas não um nome. Ele deve dizer a composição, como em
qualquer uso, em qualquer técnica,
mas enquanto que nos outros usos, em geral, os useiros não são destacáveis deles,
fazem parte intrínseca deles[22], sublinhemos pela
palavra ‘artifício’ a autonomia ganha por essas composições, no sentido em
que elas são estruturalmente reproduzíveis fora do compositor e em que é essa a
sua razão de ser. Não se trata pois somente de um ‘artefacto’, mas sobretudo de
um ‘artifício’: o sufixo ‘-fício’, ao contrário de ‘-facto’ (os dois dizendo
‘fazer’), diz também o seu
carácter ‘fingido’ (‘fingo’, em latim), fingir como ‘ficção’. Permite ainda
dizer a autonomia da sua composição em relação à “matéria de empréstimo”,
sonora ou superfície visual, em que elas são inscritas: ainda que o nome não
seja muito bonito, poderia dizer-se que se trata do mundo das artificções. É esta autonomia
de composição que lhes
proporciona as possibilidades estéticas do que chamamos ‘arte’[23], ela manifesta-se
na liberdade (relativa) da sua composição (ou ficção) segundo regras
imotivadas em relação às leis mecânicas, químicas, eléctricas, fisiológicas,
dessas matérias. Ao contrário dos outros artefactos e usos sociais, em
que as inscrições se fazem essencialmente de acordo com essas propriedades
‘materiais’, para delas se tirar partido: o que nós dizemos ‘utilidade’ ou
funcionalidade.
(E a articulação do código genético?)
23. Façamos um
parêntese para colocar a questão de saber qual é a estrutura do ADN dos
biólogos, do programa genético que eles dizem ser uma escrita (-grama),
composta de unidades discretas em linha (dupla hélice, ou duas hélices
simétricas?), a que atribuem um ‘código’. Pode-se aproveitar este quadrado
quase sinóptico para caracterizar essa escrita? Uma vez que o código consiste
na tradução em sequências de aminoácidos – proteínas, também em articulação
linear de unidades discretas –, será preciso olhar dos dois lados. Para
começar, não há dupla articulação linear, mas uma única cujas unidades se
relacionama umas às outras como um código (do ADN às proteínas, biunivocidade
sem reciprocidade, digamos): “a função do código genético é a de realizar um
aparelhamento específico entre o mundo dos ácidos nucleicos e o mundo das
proteínas” (Barbieri, 2000, pp. 96-7)[24]; trata-se portanto
de ‘palavras’, já que tendo uma significação, de que cada gene (segmento
composto destas palavras) é uma ‘frase’, transcrita em ARNm (algumas destas
palavras são sinais de pontuação, indicando o início e o final da frase). Se se
pretender que os triplicados de nucleótidos (composto cada um dum mesmo
fosfato, mais um mesmo açúcar, mais uma base azotada, esta sendo a única que é
diferente segundo quatro possibilidades, A, T, C, G) são compostos de ‘letras’,
uma tal composição não tem incidência na ‘frase’, permanece limitada adentro da
‘palavra’, ao contrário da dupla articulação, em que o jogo poético, rítmico,
das entoações, por um lado, da morfologia (verbos, número e género de nomes e
artigos, derivações) e as preposições e conjunções sintácticas, do outro lado,
são assegurados por mecanismos fonológicos, relevam duma dupla articulação (uma
dupla, não duas). É justamente por só haver uma articulação que o código
genético – relações entre as palavras do ADN e do ARNm e as das proteínas – é
universal, universalidae que parece conhecer raras excepções (mitocôndrias,
alguns unicelulares). Entre tal segmento do ADN, o ARNm que o traduz e a
proteína sintetizada, as diferenças são as mesmas, é isso que é um código. Se portanto
o ADN forma um texto, de que o ARNm é uma frase que corresponde por sua vez ao
texto de cada proteína, como caracterizar esta articulação única, comparando-a
com a escrita matemática e com a música? Havendo ‘palavras’, está do lado da
matemática. Mas como não há ‘palavras operatórias’ (excepto as pontuações),
também não há sintaxe, apenas justaposição, portanto deste ponto de vista do
lado da música (que não tem sintaxe, a justaposição não o é). Seria então uma
matemática sem sintaxe, uma música com palavras, nem uma nem outra. Talvez se
possa dizer que se trata duma inscrição sobre açúcar e fosfato (estes à maneira
de ‘matéria de empréstimo’), que se traduzirá em inscrição do ARNm, e servirá
de guião para a construção de proteínas, que são ‘funcionais’ na estrutura da
célula. Apenas o ADN e o ARNm seriam ‘inscrições’, cujas diferenças genéticas
caracterizam cada espécie biológica de forma ‘imotivada’ (como as diferentes
línguas e as diferentes sociedades). Mas não sei se isto poderá ser alguma vez compreendido
e levado a sério por algum biólogo.
II –
DO PONTO DE VISTA SEMIÓTICO
As artes poéticas segundo Aristóteles
24. São estes ‘usos
que não são como os outros’ que fornecem os materiais de que se fazem as
diversas artes da tradição ocidental. Talvez possamos entrever uma
classificação delas a partir deste quadrado quase sinóptico, situando o
panorama contemporâneo das artes e das instituições de circulação cultural, se
nos deixarmos instruir pelo primeiro grande texto filosófico a ter ousado um tal
ensaio. Deixemos cair os números, apesar da beleza de certas demonstrações
matemáticas, abramos a Poética de Aristóteles. Damo-nos conta logo de entrada que o logos e a harmonia, isto é o discurso
duplamente articulado e a música, estão entre os critérios do seu primeiro
ensaio de classificação e definição das artes poéticas, assim como as eikonas,
as
imagens pintadas, são por vezes evocadas para ajudar ao raciocínio. Vêm todos
os três logo no primeiro capítulo, depois da definição destas artes em geral pela
mimêsis, isto é, pela reprodução, das coisas da vida digamos vagamente, em
‘outras’ do que elas (en heterois, que se traduz habitualmente por ‘meios’)[25]. Trata-se da
linguagem, da música e do ritmo (este sendo típico da dança e valendo também
para a métrica dos versos), por um lado, das cores e dos desenhos do outro
(1.1447a18-22). Se se achar que o ritmo duplica a sonoridade musical,
encontramos facilmente o nosso quadrado quase sinóptico, desfalcado da escrita
matemática.
25. O que é esta mimêsis, qual é o seu ponto
forte? É referido no início do cap. 9: é o passo que vai do “particular” do que
acontece, dos acontecimentos contados pelos historiadores, ao “geral” (katholou) do possível, do
que é susceptível de ser exemplar para o público dos espectadores ou leitores:
este “geral” deve re-produzir as coisas da vida para ‘ensinar’ qualquer coisa
a esse público (início do cap. 4), purificar-lhes as paixões e elevá-las (a
célebre katharsis, tratada de 9.1452a1 ao final do cap. 14), educar essas
paixões em suma, o que não conseguem as coisas que sucedem em particular. É por
isso que mais vale traduzir mimesis por re(pro)dução, para dizer a retracção do autor
enquanto ‘particular’, a qual permite que a obra, elevada ao geral, fale dela
mesma, escondida a sua doação (pro) entre parênteses, reduzida. Como num
laboratório, tal seria, para Aristóteles, o essencial da produção artística, a
sua maneira de re-tomar as coisas da vida.
26. Os cap. 2 e 3
acrescentam dois outros critérios de classificação das artes poéticas, alem da
linguagem e da música. É possível mostrar[26] que o critério do
cap. 2 é mais da ordem da ‘ética teatral’, opondo a ‘baixa’ comédia à ‘nobre’
tragédia e visando a karharsis, e que substitui, em função da definição de tragédia no
início do cap. 6, ‘a acção trágica’, o seu muthos ou narrativa, esta
narratividade sendo então um critério decisivo a reter[27], omisso no cap. 2.
Quanto ao cap. 3, restringido às artes de narratividade, distingue as artes
que, como a epopeia, relevam só da narração, das que, como tragédia e comédia,
se jogam na cena teatral por meio de actores.
Linguagem, música
e narratividade, cena e moldura
27. Entendo aqui logos como o discurso em
linguagem duplamente articulada, quer oral quer escrita, e a narratividade como uma sucessão
de sequências com princípio, meio e fim (cap. 7), formando um “todo” (holon) temporal, com uma
lógica razoavelmente assegurada (a célebre verosimilhança[28]). Com estes três
critérios, já se podem preencher algumas casas duma tabela classificadora das
estruturas das principais artes contemporâneas. Artes que só têm linguagem
(poesia no sentido estrito e oratória), outras que só têm música (concerto), ou
só narratividade (pantomina). Depois, artes com linguagem e narratividade
(literatura narrativa, romance, teatro, banda desenhada), outras que aliam
música e narratividade (dança), e os que juntam os três (ópera, cinema,
animação). Mas nestas duas últimas casas há coisas bastante díspares e outras
artes ficam de fora, que escapam a estes três critérios: pintura e desenho,
fotografia, escultura, cerâmica, tapeçaria, mobiliário, arquitectura,
monumentos. Os três critérios não são pois suficientes, temos que encarar os do
cap. 3, entre cena teatral e texto narrativo. Ora, este é tipografado nas
páginas rectangulares dos nossos livros e sucede que pinturas e fotografias são
enquadrados em molduras rectangulares. Teremos então um outro critério que
permite distinguir artes de cena e artes de moldura. Esta é característica da
pintura, desenho, fotografia, banda desenhada, cinema e tapeçaria: a sua forma
geral é o rectângulo. Mas as páginas dos livros, jornais e revistas também
são rectangulares, o que especifica a banda desenhada como duplamente
emoldurada: temos pois que distinguir moldura e paginação.
28. Quanto à cena,
ela é inerente ao teatro, mas também à pantomina, à poesia declamada e à
oratória, bem assim como a todas as artes da música: a canção, a ópera, o
concerto e a dança, e ainda ao cinema. A arte típica do século XX é assim a
única a definir-se ao mesmo tempo pela moldura e pela cena: é justo que tenha
sido chamada 7ª arte, é verdadeiramente nova em relação à tradição. Mas de que
arte mais englobante releva esta cena artística? Da arquitectura (das salas de
espectáculo). E a arquitectura, por sua vez, tem alguma cena enquadrando-a?
Sim, a paisagem, critério artístico decisivo em arquitectura, como se sabe,
cada obra devendo jogar com as suas vizinhas. Também os monumentos, do tipo das
estátuas, se enquadram na paisagem, a diferença em relação à arquitectura sendo
que estes não podem envolver outras artes. Mas outras formas de arte, que não
tinham casa onde se alojar, encontram-na aqui: a escultura, a cerâmica, a
tapeçaria e o mobiliário alojam-se no interior da cena arquitectural, duma
forma mais livre do que as salas de espectáculo mas igualmente condicionada, já
que o seu destino como obras de arte depende do lugar de exposição, da sua
posição respectiva a outras obras, da cena como decoração.
29.
|
Linguagem
|
Música
|
Narratividade
|
Cena
|
Moldura
|
Poesia oral Oratória
|
+
|
ø
|
ø
|
+
|
ø
|
Poesia escrita
|
+
|
ø
|
ø
|
ø
|
+ (2)
|
Concerto
|
ø
|
+
|
ø
|
+
|
ø
|
Pantomima
|
ø
|
ø
|
+
|
+
|
ø
|
Canção
|
+
|
+
|
ø
|
+
|
ø
|
Romance
|
+
|
ø
|
+ (1)
|
ø
|
+ (2)
|
Teatro
|
+
|
ø
|
+
|
+
|
ø
|
B. desenhada
|
+
|
ø
|
+
|
ø
|
+ (2)
|
Dança
|
ø
|
+
|
+
|
+
|
ø
|
Ópera
|
+
|
+
|
+
|
+
|
ø
|
Cinema
|
+
|
+
|
+
|
+
|
+
|
Pintura
Fotografia
|
ø
|
ø
|
ø
|
ø
|
+
|
Escultura
Cerâmica
Mobiliário
|
ø
|
ø
|
ø
|
+ (3)
|
ø
|
Tapeçaria
|
ø
|
ø
|
ø
|
+ (3)
|
+
|
Arquitectura
Monumento
|
ø
|
ø
|
ø
|
+ (4)
|
ø
|
(1) suportada pela
linguagem (2) paginação (3) decoração (4) paisagem
Comentário
30. Reflexões
simples dum não especialista. Um pouco mais de metade das artes (11 em 20),
ocupando sozinhas uma casa, têm uma definição estrutural suficiente. Excepções:
poesia oral e retórica distinguem-se por figuras de ritmo, um pouco como verso
e prosa, por um lado, mas também pela função retórica de persuasão (religiosa,
politica, pedagógica) da segunda. Pintura e fotografia (como cinema e desenho
animado?) distinguem-se pelos processos de fabrico, seja a arte manual do
desenho e da cor, seja a utilização de maquinaria química de luz ou de gravação
electrónica. Escultura, tal como a poesia, distingue-se pela sua gratuidade
artística da funcionalidade habitacional da cerâmica e do mobiliário.
Poder-se-á pretender que as questões estéticas específicas destas diversas
artes se ligariam às características estruturais das respectivas semióticas?
31. A narratividade
não tem o mesmo modo de se expor nas epopeias, romances e outras narrativas
literárias, é a linguagem duplamente articulada que a suporta, e nas artes de
cena, o papel da linguagem podendo ser mais ou menos importante mas sempre
dependendo das falas dos actores personagens (a lexis da Poética) que exibem a
narrativa nos seus gestos e diálogos (também na banda desenhada, que por vezes
inclui um texto narrativo). Esta diferença ajuda a compreender as questões de
transposição entre estas artes: é que a narratividade presta-se a ser resumida
num guião, podendo assim um romance ser origem dum filme, havendo então que
considerar que esse guião comum é o resíduo não artístico dum ou como do outro.
O que daria uma espécie de critério estético negativo: o artístico nessas artes
é aquilo que se perde no resumo, a transposição consistindo na substituição, no
guião comum, do específico duma arte pelo específico da outra, o que dá origem
a quatro hipóteses de sucesso artístico (as duas belas, só uma delas, nenhuma),
sem garantias a priori.
32. Também se
poderia pretender que dois pares de artes, poesia oral e canção, teatro e
ópera, se distinguem pelo acrescento de música à linguagem, tratando-se das
duas artificções (§ 22) da sonoridade. Diferente é o caso da pantomina e da
dança, já que a primeira insiste sobre a mimêsis, enquanto que na
dança a música joga nos corpos, leva-os a um excesso além da sua marcha
habitual, assim como a prosa quotidiana se interessa pelas coisas ditas e os
versos seriam a sua excessiva ‘música’.
33. O motivo de
‘moldura’, tal como o de cena, tem a vantagem de ter em conta a clausura
específica destas artes, o que delas se exclui e os seus efeitos sobre o que se
inclui, forçá-lo, condicioná-lo, alterá-lo, dando à obra uma unidade semiótica
específica que nega a relação intertextual com os outros ‘possíveis’ que esta
obra não será. Trata-se dum critério mais energético do que estrutural,
inspirado na leitura do parergon kantiano por Derrida[29]. Não é indiferente
para um pintor a dimensão do rectângulo da sua obra: a sua arte não é feita
apenas de traços, formas e cores, mas também da sua justaposição no rectângulo,
de maneira a obter efeitos artísticos independentes de qualquer ‘referente’,
ainda que se trate de pintura figurativa. É justamente para chegar a esta
composição inédita que terá sempre que haver coisas a excluir, de-cisão (corte)
intrínseca às abordagens e afastamentos das formas, traços e cores bem como às
questões de escala e de perspectiva.
34. Também na
fotografia o mesmo fotografado pode ser tratado de formas indefinidamente
diferentes, segundo o que se exclui e portanto a disposição interna do que se
inclui: as imagens resultantes são sempre singulares, é a singularidade que
qualquer artista busca incessantemente. É esta característica que constitui o
conceito cinematográfico de plano, desde o grande plano dum detalhe até à mais vasta
panorâmica. A escrita do movimento (kinêsis, cinemato-grafia)
não é senão este jogo de montagem das mudanças de plano, de que se vão
escolhendo as diferenças de moldura. O teatro não tem este jogo, embora os
jogos de luzes actuais na encenação busquem aproximar-se dele.
35. Quanto à
paginação, é a base das artes gráficas, dos belos livros, das revistas e
jornais, que jogam com as linhas dos textos e as fotografias ou desenhos, de
forma a chegarem a uma disposição artística do rectângulo da página, como obviamente
no que diz respeito à banda desenhada. Poder-se-ia por a questão do jogo da
tipografia elaborada, uma edição luxuosa de A Divina comédia, por exemplo, em
contraste com uma edição de bolso para estudantes: haverá alteração do texto?
Sem dúvida que o significante linguístico é o mesmo (como o Sermão da Quarta
feira de Cinzas do P. António Vieira lido por Luís Miguel Cintra ou por
um fraco estudante). Mas já que nas estantes das livrarias e das bibliotecas
não há senão ‘livros’, objectos arrumados, já que não há texto senão no longo
tempo da sua leitura, já que esta produz efeitos de sentidos plurais bastante
complexos, nomeadamente segundo a cultura do leitor, como dizer esses efeitos
de leitura numa paginação artística? Ou ainda os efeitos das variações do jogo
entre as linhas e os rectãngulos das páginas, das imagens?
36. Aristóteles faz
da cena teatral um critério definidor da tragédia, mas em seguida, num
movimento logocêntrico que privilegia a narratividade e a linguagem, a parte do
poeta que escreveu a peça, ele chega a negar que ela releve da arte poética
(apenas das despesas dos cenários); pode-se todavia mostrar que os diversos
limites das outras partes da tragédia, nomeadamente a extensão ou duração do
narrativo, são dados pela cena. Em sentido oposto, o teatro contemporâneo foi
levado a insistir sobre a encenação que pode chegar ao ponto de tornar ‘outra’ a ‘mesma’
peça dum dado autor (o que Aristóteles teria detestado). As canções de Anne
Sylvestre não deveriam ‘caber’ nas decorações feéricas dos shows
hollywoodianos. A arte da declamação poética ou da oratória depende da
distância ao público, nem a um metro de distância nem de maneira a que seja
necessário gritar para se ser ouvido pela sala; em sentido contrário, um certo
tom secreto, intimista, sedutor, jogando sobre a aparelhagem acústica, pode
tornar-se asfixiante. O jogo com as entoações dos actores de teatro, para se
fazerem ouvir, obriga-os a alterações mais ou menos difíceis quando eles actuam
em filmes. E por aí fora, desculpe-se-me esta falta de jeito para tornar
sensível como a cena, tal como a moldura, tem um papel enclausurante em relação à suas
artes. Numa outra direcção, já Aristótles recomendava que o “irracional” (alogon) seja dado fora da
cena (24.60a29), enquanto por outro lado, aconselha o poeta que compõe a
“colocar ao máximo a cena debaixo dos olhos” (18.55a22-3). Hitchcock vociferava
contra a facilidade de fazer-se os personagens contarem o que se passara em vez
de o mostrar em cena, a filmagem da narratividade devendo sobrepor-se ao
discurso. No extremo oposto, Duras, a escritora, guarda a banda sonora de Índia
Song para lhe sobrepor uma outra banda de imagens e fazer Son nom de Venise
dans Calcutta désert, como se o jogo dos sons pudesse fazer-nos ‘ver’ os dois
filmes ao mesmo tempo.
Retorno à mimêsis
37. Só há mimêsis quando o artista
não aparece, não deve aparecer, tem que permanecer retirado para que o público
possa ter acesso à obra, a qual deve poder permanecer além da sua morte (o que
é característica geral de todas as inscrições). Este retiro essencial é o da
re(pro)dução, retiro do artista em relação ao próprio público, tendo em vista
os efeitos que tentará pro-vocar nele. O ‘re-‘ – repetição, recuo, retiro – diz
que qualquer arte, figurativa ou não, é mimética por partir do mundo social e
se afastar dele, digamos, este movimento de saída sendo o primeiro tempo da
produção artística, que pedirá um último tempo, o do retorno: ‘-dução’. Entre
ambos, em retiro pois, escondido, enigmático, o que faz vir a obra como acontecimento:
‘pro’ de produção, em que, sem que se saiba como, o artista faz vir – ‘pro’ – o que
simultaneamente deixa vir – ‘(pro)’ – o que lhe é assim dado. Esta simultaneidade
do activo (trabalho) e do passivo (inspiração) é cultivada de maneira específica
pela arte, de maneira diferente da do pensamento, filosófico ou literário por
exemplo, ou do laboratório científico.
38. A mão do poeta
escreve palavras e frases, joga ao mesmo tempo sobre a sonoridade e o ritmo
(paradoxo duma arte escrita que se revela na declamação oral) das palavras
significantes e sobre o pensamento da frase e seu encadeamento com as outras
frases; mas o seu retiro re(pro)dutivo cria oscilações nas palavras, na sintaxe
das frases, afasta-as da sua utilidade quotidiana, repetida por toda a gente,
para as fazer tender para o acontecimento poético, excelência do dizer e do
pensar. Tratar-se-á de ajudar o leitor a elevar, ele também, a sua voz, o seu
discurso, a ir até aonde se pode, além do que se pode, a elevar a sua ‘cultura’
e a sua vida no retorno ao quotidiano[30]. Para isso, o poeta
teve que se retirar do papel escrito, deixar o leitor à ‘sua’ leitura, deixar a
obra obrar enigmaticamente. Só o escrito retorna, não o poeta, que não tem que
explicar o que escreveu (nem o saberia fazer), nem ser entrevistado, nem que
conhecer o leitor, distância esta que é para bem de ambos, que os seus mundos
são outros.
39. O retiro na
cena visual e sonora passa essencialmente por actores e intérpretes, quer os do
teatro e do cinema, é claro, mas também os músicos e os cantores, todos os que
têm que ensaiar antes de ir à cena. Esta repetição dos ensaios é
estruturalmente uma dissimulação, uma retracção em que há que aprender a
tornar-se outro, um ‘personagem’ que age na cena por conta de outrem, ainda
quando ele próprio é o compositor, o inesquecível José Afonso. Na cena não há
distância temporal entre a produção da obra e a sua leitura pública, a sua
re(pro)dução (excepto no cinema, que é também uma arte de moldura), é a figura
do actor, do intérprete, como dissimulador (reproduz o que não vem dele mas
doutrem) que torna possível o retiro do artista em o qual não há arte, a
improvisação não sendo porventura senão a excepção que confirma a regra. Tal
como na poesia, o que se busca é também elevar as pessoas além da
repetitividade da sua vida quotidiana, reproduzir esta de forma intensa e
singular, a fazer dela acontecimento. Assim aprendemos por exemplo a amar,
lendo romances, vendo teatro e cinema.
40. As imagens
rectangulares implicam também o retiro dos seus autores, de duas formas bem
diferentes. A mais recente é uma máquina de ver, que olha e guarda o que olhou
para que possa depois ser reproduzida em papel ou noutra superfície
rectangular, écran de cinema ou de televisão. Ela tem a sua ‘câmara escura’,
portanto retirada da luz, que se abre o tempo dum clique e fecha de novo desde
que a diferenças de luz se tenham inscritas na película química ou electrónica.
Isto é feito automaticamente: o único jogo que é possível é o da
rectangularização, do plano (perspectiva, proximidade, encenação) e o da
duração da abertura, e em seguida os processos de laboratório, de montagem.
Trata-se portanto, ao invés da pintura, duma técnica, de que a instantaneidade
tem o risco do inartístico, da reprodução sem a retracção da arte. Já que o
tempo é essencial à arte dos pincéis e das cores químicas, essa arte bem antiga
que foi sempre pensada como mimêsis, como a arte do olhar que ensina a olhar melhor. O
choque provocado pela fotografia, pondo em questão um certo realismo, permitiu
sublinhar a retracção do olhar do pintor, como se este esquecesse as coisas, as
gentes, as figuras e só guardasse os riscos e as cores, livres enfim no seu
jogo de pintar. Mas como se trata sempre de ‘-dução’, de retorno ao olhar do
público, esta pintura que chega ao abstracto faz como que um desvio do olhar,
uma oscilação das induções entre o ‘figurativo visto’ e o ‘não figurativo
pintado’, apagando o ‘re-‘ para guardar apenas o olhar, num mundo de
proliferação indefinida de imagens: a arte de elevar os nossos olhares
tornou-se mais exigente. O que também veio a incentivar o fotógrafo a aprender
por sua vez com o pintor a retracção do seu olhar artístico, a construir o seu
plano, a desconfiar do instantâneo e da funcionalidade da técnica, do documento,
a dar-se o tempo da arte de olhar.
III –
DO PONTO DE VISTA DA CIRCULAÇÃO
Técnicas de circulação cultural
41. Estas
“inscrições numa matéria de empréstimo” – esta podendo ser quer sonora, quer
visível ou táctil, como vimos –, que oscilam entre o funcional e o gratuito
artístico, têm uma longa história (desde a invenção do desenho, do canto, da
escrita e do cálculo) que, com o desenvolvimento das sociedades agrícolas de
casas e das cidades, possibilitou o alfabeto na Antiguidade mediterrânica e no
alvor da Europa a imprensa, antes (e condição) da máquina e das sociedades
modernas de instituições e família. Os livros (seguidos dos jornais e das
revistas), reproduzindo as obras e o saber dos antepassados e as inovações dos
contemporâneos, foram as primeiras técnicas de circulação cultural modernas
absolutamente vitais, trazendo a possibilidade do desenvolvimento quer da
escola, quer da opinião pública. Os dois últimos séculos multiplicaram as
técnicas de circulação respeitando ao conjunto do nosso quadro sinóptico, a
electricidade e o electromagnetismo permitindo juntar às inscrições visíveis a
transmissão a distância das sonoridades dos discursos e das músicas bem como o
movimento das imagens. De forma tal que foi possível encontrar nessa transformação
em corrente eléctrica e em ondas electromagnéticas um critério para dizer o
conjunto sem nome das artes e das outras inscrições de que aqui nos ocupamos:
pertence a esse conjunto tudo e apenas o que pode ser assim transmitido[31]. Ocupar-nos-emos
aqui das técnicas, não das instituições.
42. Não nos
espantaremos de encontrar aqui as mesmas rubricas classificativas das artes, já
que se trata das mesmas inscrições, a escrita matemática não acrescentando
nenhuma diferença significativa. Mas haverá um novo critério a acrescentar,
propriamente técnico, que tem a ver com a maneira das respectivas instituições
chegarem ao público. Ou tira-se um número maior ou menor de cópias (a mesma inscrição
em matérias individualmente diferentes) e se as distribui em seguida pela
geografia do território habitado pelo público destinatário, como era já o caso
dos livros e continua a ser o da imprensa escrita, jornais e revistas, mas é
também o dos discos, filmes e vídeos; há uma distância temporal irredutível
entre a produção antes de mais, a tiragem das cópias em seguida e a
distribuição geográfica num terceiro tempo, a concorrência centrando-se (para o
mesmo tipo e qualidade de produtos, ou seja para o mesmo público) na redução
desses hiatos, tendo em conta nomeadamente a efemeridade dos produtos. Ou a
difusão directa por ondas magnéticas, que a partir de fontes de emissão chegam a antenas de
recepção alojadas nas cenas familiares. Trata-se da multiplicação da mesma cena
pelas arquitecturas residenciais, fazendo economia das cenas especializadas do
teatro e das salas de cinema e da sua concentração de público. O ‘directo’ da
difusão a velocidades muito grandes elimina quer as cópias quer os tempos da
sua distribuição, assegurando ao mesmo tempo a possibilidade de atingir números
muito grandes de auditores e espectadores, números comparáveis com os das
populações dos territórios em questão. Com a consequência de o elitismo das
artes e a elevação do público serem postas em questão: o que está agora em jogo
são as ditas ‘massas’, estas instituições que são chamadas em americano “mass
media”.
Tabela dos Médias
43.
|
Emissão
|
cópias
|
linguag.
|
narrativ.
|
música
|
cena
|
moldura
|
livros jornais revistas
|
ø
|
+
|
+ (1)
|
+ (2)
|
ø
|
ø
|
+ (3)
|
discos
|
ø
|
+
|
+ (4)
|
+ (2)
|
+
|
+ (5)
|
ø
|
rádio
|
+
|
ø
|
+ (4)
|
+ (2)
|
+
|
+ (5)
|
ø
|
cinema
|
ø
|
+
|
+
|
+
|
+
|
+
|
+
|
TV
|
+
|
ø
|
+
|
+
|
+
|
+ (5)
|
+
|
vídeo
|
ø
|
+
|
+
|
+
|
+
|
+ (5)
|
+
|
(1) escrito (2) transportado pela
linguagem (3) paginação (4) oral (5) cena residencial
44. Antes da
internet, o problema dos computadores não se punha enquanto médias[32], como continua a
não se pôr o dos telefones ou o dos correios: eram apenas máquinas de escrever
e calcular incomparavelmente mais eficientes do que as que antes havia. A
internet, a grande Teia, pelo contrário, não será um ‘média’, já que desafia os
critérios da tabela proposta. Se há instituições específicas, os servidores, não são mais do
que computadores muito grandes a que se ligam os privados que querem entrar no
jogo; de facto, tanto os emissores como os receptores são computadores
geograficamente localizados que ‘entre si’ (inter) fazem ‘rede’ (net) através
do nó dum servidor, que por sua vez faz rede com outros servidores. Esta rede
de numerosos servidores não se presta a que haja ‘emissão’, já que ninguém tem
acesso indiscriminado a todos os computadores, dum país por exemplo, ou duma
região. Os servidores são susceptíveis dum certo controle politico mas cuja
autoridade, tanto quanto sei, é a da ameaça de cancelamento de tal ou tal
servidor[33], não a de
intervenção directa na emissão, como se pode fazer por comunicados nas rádios,
nas televisões e em jornais (médias que podem ser ‘ocupados’ militarmente, como
nos golpes de Estado): não só não se ‘emitem’ comunicados oficiais na Teia,
como cada um pode rejeitar receber o que venha de tal ou tal computador. Todos
os ‘emissores’ na Teia são singulares, indivíduos ou instituições, com a
diferença importante de os servidores terem um raio de acção maior do que os
particulares e de estes terem de passar por aqueles para chegarem a terceiros.
Haverá, pelo menos, duas potencialidades inéditas a sublinhar: as de ordem
democrática, devidas ao acesso de todos os interessados a uma rede com possibilidades
de repercussão indefinida, potencialidades essas que, juntamente com as redes
de telemóveis, já foram demonstradas desde as eleições espanholas de 2004 até
às revoltas árabes da primavera de 2011; potencialidades também de ordem
cultural, a saber o acesso às grandes obras da história humana, literatura,
pensamento e outras artes, a Teia sendo uma biblioteca e discoteca e museu
universal. Se se atender a que no conceito de média que se propôs há uma
direccionalidade, de emissor a receptor (em que a este resta a liberdade de não
ler e não ouvir), propício a dominações ideológicas variadas, pode-se pensar
que afinal o termo ‘média’ só na Teia é que pode jogar com o sentido que ele
tem (como em ‘intermédio’). Acrescente-se que, como qualquer instituição
pedagógica, como por exemplo as bibliotecas, ela não pode ser eficiente sem a
ajuda de testemunhas culturais mais sabedoras, à maneira dos professores nas
escolas.
Relação entre médias e artes
45. Na tabela dos
médias, eles repartem-se em três grandes tipos: os gráficos ou de paginação (1ª
linha), os auditivos ou sonoros (2ª e 3ª linhas) e os que jogam sobre as três
possibilidades (4ª, 5ª e 6ª linhas). A cópia é uma operação técnica que
reproduz integralmente um texto, um filme, uma música em outras matérias de
empréstimo, e não diz respeito à arte: copiar uma pintura ou um desenho é uma
falsificação. Mas os médias podem fazer circular obras artísticas diversas,
podem citá-las: chamo citação aqui ao enxerto entre médias e artes, à maneira como
aqueles fazem circular estas, quer integralmente (rádio que difunde um
concerto, televisão que passa um filme, livro que reproduz um quadro), quer
parcialmente, efectuando então uma operação de montagem. Trata-se duma
operação técnica, sem dúvida, mas que deve responder ao carácter artístico da
obra, respeitá-lo ou mesmo realçá-lo: o cinema, em que a montagem é essencial à
arte do filme, aprendeu muito cedo a utilizá-la em correlação com o jogo dos
planos, depois também com a banda sonora. A regra geral da citação é dada
pelo confronto entre as duas tabelas, a das artes e a dos médias. Serão
integralmente citáveis por cada tipo de média todas as artes cujas
características coincidem com as desse média. Os livros, jornais e revistas
podem citar integralmente as artes de moldura, excluindo pois a música e a
cena, e portanto também o cinema, apesar do rectângulo deste. Inversamente,
discos e rádio, ao incluírem a linguagem oral e a música, excluem a moldura e
as cenas de narratividade. Cinema, televisão e vídeo, que citam correntemente
filmes, mas com perca da magia da sala escura, podem teoricamente citar
integralmente todas as artes, mas com as restrições que se impõem de facto com
a noção de plano, que torna as artes de paginação, um romance, por exemplo,
difíceis de serem citadas integralmente, enquanto texto escrito, de forma
económica num filme ou na televisão. Quanto às artes de cena, a citação
cinematográfica ou televisiva faz-se seguindo percursos diversos, ou até com
montagem por diversas câmaras, a multiplicação dos planos tendo como reverso a
sua parcialidade.
46. O malentendido
entre artes e médias resulta de que a funcionalidade destes e os seus custos,
devendo cobrir toda uma geografia mais ou menos extensa, opõem-se à gratuidade
da apreciação da arte: não que não haja que pagar um livro (mas pode-se
emprestar) ou um filme, mas pelo facto de que a sua recepção deve constituir
sempre um acontecimento, ter algo que releve do que em linguagem cristã se
chama um ‘estado de graça’. Ora, o best-seller não é senão
raramente um best-art. As técnicas de circulação cultural só podem jogar
adentro de instituições, com o que isso implica de funcionamento regular e de
periodicidade, de repetições, de custos de máquinas e de energia, de salários
dos artistas (escritores, músicos, actores, realizadores, encenadores) que são
supostos serem sempre capazes de produzir ‘acontecimentos’, de busca de lucros
enfim. E sobretudo talvez, este carácter institucional implica que jornais,
editores de livros, rádio e televisão, tenham que produzir sempre, os últimos por
vezes 24 horas em 24. Como conseguirem manter sempre a qualidade? Por outro
lado, o desenvolvimento das sociedades modernas fez crescer grandemente os
salários médios e a monotonia dos empregos e das respectivas idas e vindas,
crescer portanto também as demandas de divertimentos, de feriados e de férias,
demanda de tempo livre e de não saber o que fazer dele. Aonde a utopia de André
Gorz propunha uma esfera de autonomia, imaginação e solidariedade frugal para
esses novos tempos livres[34], assistiu-se ao
desenvolvimento de uma ‘indústria cultural e de divertimento’ especializada na
caça das ditas ‘massas’, isto é, de gente de riso e palmas por tudo e por nada,
fazendo-se uma concorrência mortífera feita de sensacionalismos na busca de
audiências e de publicidades, tudo isto servindo de circo democrático quando o
pão é pouco, e também engordando os números dos PIB dos economistas e
políticos: assim se fecham os dois extremos da cadeia, o do riso e o dos
números sérios.
IV –
DO
PONTO DE VISTA DO DISPOSITIVO : NEURÓNIOS, PAPEL, CIRCUITOS ELECTRÓNICOS
Dispositivos de inscrição: neurónios, papel, circuitos
electrónicos
47. A evocação destes diversos tipos de
“usos não como os outros”, de “inscrições numa matéria de empréstimo”, permite
considerar os dispositivos que podem fazer essas inscrições. Tal como o grego
dizia com a mesma palavra techné, o que nós chamamos artes e técnicas (os
artesanatos),
designando tanto as artes manuais como as artes do discurso, do mesmo modo um
jogo é possível com a palavra hulê, madeira, a ‘matéria’[35] utilizada na
construção com a pedra. Ora, tanto a madeira como a pedra e a argila foram das
primeiras matérias de empréstimo das escritas antigas, essa madeira de que é
feito ainda o papel das nossas inscrições, mas que deu lugar ao aço e ao betão
armado na
construção. Se a imprensa, a indústria da escrita alfabética de ‘dupla
articulação’, esteve no começo da modernidade europeia, o vapor proveniente do
carvão, o petróleo e sobretudo a electricidade – as máquinas, de ‘dupla
articulação’ também – asseguraram o seu desenvolvimento; livros e máquinas e
libras, foi isso a nossa modernidade.
48. Digamos
telegraficamente como a electricidade desempenha três papéis. a) A grande
utilidade da electricidade clássica, dita de ‘correntes fortes’, é o seu modo
limpo (do ponto de vista da poluição) e económico (do ponto de
vista dos custos) de transportar a energia para longe (‘tele-‘); chegada às
fábricas ou aos nossos apartamentos, ela é transformada noutras formas de
energia, quer em iluminação, quer (por meio de um motor nas máquinas) em
mecânica, térmica, etc., são estas outras energias que trabalham. b) Esta
energia ‘tele-‘ pode também alimentar os aparelhos electrónicos, de ‘correntes
fracas’, em que ela é transformada em artificções (linguagem oral, músicas,
escritas diversas,
inclusive imagens), transportada por antenas (ondas electromagnéticas) ou cabos
de tipo telefónico. c) Enfim, a energia eléctrica cessa de ser ‘tele-’ para trabalhar
por ela própria, conduzida por programas de software em circuitos
electrónicos de hardware, quer em máquinas de construção, quer em aparelhos de
inscrições: o robot e o computador. Depois da fotografia, do cinema, das ondas
do audiovisual e da gravação electromagnética, é a última grande revolução
moderna nas matérias de empréstimo das inscrições.
49. Ora, acontece que os
engenheiros dos robots e computadores procuram os seus modelos no cérebro
humano. Isto deve ser sugestivo para os filósofos, encontrarem problemas filosóficos
no coração de
questões técnicas, e começa por chamar a nossa atenção para o facto de o
cérebro, dispositivo de inscripção por excelência, só o ser depois de ser ele
próprio ‘matéria de empréstimo’ das inscrições de outros cérebros. Ele faz parte
de um sistema mais
complexo, entre os órgãos perceptivos e os músculos, onde podemos encontrar
três grandes eixos : da visão ao trabalho das mãos e à caminhada dos pés,
da visão ao trabalho só com as mãos e da audição à fonação, podendo nós fazer corresponder
os robots ao primeiro, os computadores ao segundo e o telefone ao terceiro. Mas
dos robots não nos ocuparemos aqui; tomaremos em consideração a) os cérebros
humanos, b) o papel dos livros, c) o computador, actualmente jogando entre
visão e mãos, d) e num futuro previsível entre audição e fonação também. Esta
ordem, a da cronologia da sua invenção coloca-nos uma primeira diferença
entre o cérebro e os outros dispositivos de inscrição: ele foi inventado pela
muita lenta evolução dos vertebrados, dos peixes aos símios, antes das inscrições (e das
construções). O que implica uma delimitação essencial do dispositivo cerebral
enquanto comparável ao livro e ao computador: as tarefas essenciais de qualquer
cérebro animal não têm nada a ver nem com os livros nem com os computadores,
não servem para nada na
comparação que tentamos aqui. Em rigor aliás não há sequer cérebros, só há
sistemas biológicos e fisiológicos mais ou menos complexos, implicando os
órgãos ditos perceptivos e o sistema muscular ligado ao esqueleto e à
mobilidade; mas implicando de igual modo o ‘resto’ do organismo, nomeadamente a
circulação do sangue que o cérebro controla por via hormonal, assegurando-lhe o
equilíbrio homeostático
(teores variados, pressão, temperatura, etc.) (J.-D. Vincent). O sistema P-C-M
(órgãos perceptivos-cérebro-músculos) tem a sua razão de ser na regulação
necessária do organismo animal, face ao aleatório do tráfego no seu território
ecológico[36], tendo em conta
a predação e a fuga face à dos outros, a necessidade de assegurar as suas
condições de reprodução e repouso, etc. Tudo isto pertence à essência do
cérebro animal, que foi
inventado pela evolução para ser-no-mundo-ecológico, quer por meio dos
eixos olfacto / patas, mandíbulas-gosto / patas, quer pelos eixos visão /
patas, audição / emissão de ruídos, etc. Enquanto que o computador foi
inventado, a exemplo do livro, para ser-nas-escritas, primeiro
matemáticas e alfabéticas depois também, que existiam já e pediam
matérias de empréstimo cada vez mais aperfeiçoadas. Foram os primatas
antropoides que, tendo no entanto um cérebro muitíssimo próximo do dos outros
primatas símios, inventaram as línguas e as escritas (e as construções).
50. Quer isto dizer que os
cérebros não são comparáveis aos livros e aos computadores senão a partir da
invenção da linguagem duplamente articulada (oral e alfabética) e
da matemática.
Ora, do ponto de vista neurológico, essas linguagens são suplementares, elas
inscrevem-se em certas
regiões da rede sináptica dos cérebros humanos, ditas áreas de Broca e de
Wernicke, as quais tinham já funções de inteligência pragmática, de
compreensão estratégica na luta pela sobrevivência : foi em vista dessas
funções que os cérebros foram inventados pela evolução da vida terrestre. Dito
de outro modo, se se dá a ‘pensamento’ o sentido corrente na nossa
civilização, aquele que pode valer também para os livros e para os
computadores, não se pode dizer que ele seja uma função essencial dos cérebros
animais em geral, nem ainda que, no que respeita aos humanos, se trata de uma
função hierarquicamente superior em relação às outras funções cerebrais. Dizer
que o pensamento humano é histórico, implica pois que ele tenha sido também
‘inventado’, que ele tenha qualquer coisa de ‘artificial’, que não se possam
opor os três dispositivos em termos de ‘natural / artificial’. Trata-se de
algo de positivo para a nossa comparação, que deveria poder ajustar
melhor as pretensões dos engenheiros da Inteligência Artificial às dos
psicólogos e dos filósofos que se lhes opõem. É aliás também positivo para o
debate que se delimite o que é verdadeiramente comparável entre tudo o que um
cérebro pode realizar[37]. Porque enfim,
é positivo que um computador ou um robot não comecem a sonhar, a terem
depressões ou orgasmos. Digamos que tentaremos aqui privilegiar as escritas e
as suas operações sintáctico-semânticas, a sua aprendizagem e a sua memória.
51. Por outro lado, e é
o que justifica os interesses filosóficos dos seus engenheiros, o computador
está do lado do cérebro em oposição ao livro, pelo facto de trabalhar,
enquanto que o papel se oferece à impressão e não ‘mexe’: fica para ser lido.
O computador vai mais longe do que o cinema, onde as imagens estão em movimento
por meio de uma máquina mas não se alteram desde que o filme esteja terminado,
enquanto que ele faz verdadeiras operações, umas que já se faziam antes da sua
invenção mas que ele realiza muito mais depressa, outras, tal como
as simulações, que os humanos não estão em condições de fazerem por eles mesmos.
52. Tratar-se-á de
analisar as diferentes maneiras de os dispositivos se relacionarem com as
respectivas inscrições, diferentes também segundo o tipo de linguagem ou
escrita utilizada.
A inscrição no papel
53. Comecemos pelo
livro. A sua matéria de empréstimo, o papel, é uma superfície susceptível de
inscrição do tipo tinta, assegurando quer o contraste das cores (negro sobre
branco), quer a duração do material. Ela tem assim uma muito grande disponibilidade face
à inscrição, no sentido dos limites impostos: qualquer tipo de alfabeto ou de
outra escrita – ideográfica, matemática, desenho, fotografia, notação
musical, etc. – pode ser inscrita num livro. Uma tal disponibilidade não existe
do mesmo modo nos dois outros dispositivos (que exigem, um a lenta
aprendizagem, o outro um software adequado), mas tem uma contrapartida, uma vez
a superfície escrita não
se pode mais inscrever nenhuma outra, ou seja, não há palimpsestos: nestes, ou
se lê um, ou o outro texto, não os dois.
54. Um livro numa estante
nada mais faz do que ficar entre duas leituras, é uma coisa, não é um
dispositivo de linguagem. Para o ser, exige um sistema P-C-M humano que o leia.
O que é ler? Não é ‘ver’: eu posso
ver com detalhe um livro escrito em russo sem poder entender uma só palavra.
Mas ler também não é seguir uma palavra após a outra: é uma operação de
apreensão, de compreensão das diferenças (entre letras, sintáctico-semânticas,
códigos textuais, efeitos de ritmo) entre as palavras e entre as frases, das
regras (a língua) que
organizam o texto, inclindo palavras que não estão escritas. Quando leio a
palavra ‘bem’ num texto, devo saber que é um termo mais ou menos oposto a
‘mal’, mesmo se esta palavra não figura lá. Ora, as diferenças ‘lidas’, que
implicam pois também ausências, não se ‘vêem’. Além disso, ler implica, por um
lado, a memória do que já se leu em páginas anteriores (sem o quê não se
entende nada), mas esta memória permanece de algum modo em retiro, nem
‘presente’ nem ‘ausente’, esquecida e memorizada: não retenho de cor tudo o que
já li, esqueço o detalhe, mas se volto duas páginas atrás, sei que as li,
reconheço-as. E por outro lado, antecipo o que ainda não li, como que em
‘suspense’, na expectativa, no desejo de saber que me faz continuar a ler. E o
que lerei ligar-se-á ao que já li: retenho os jogos das diferenças já
lidas, adio ou difiro as ainda não lidas. E depois da leitura terminada, uma
certa memória permanece inscrita no meu cérebro (possibilidade de conversar
sobre ele, de lhe fazer um resumo, escrever uma recensão, etc.), memória essa
que poderá durar mais ou menos tempo durante a minha vida posterior, permanecer
esquecida durante muito tempo e voltar-me um dia por associação com um outro
livro do mesmo autor, por exemplo. Relidos ou não, há livros que jamais se
esquecem completamente, mas posso também relê-los alguns anos mais tarde, com
uma outra compreensão, ou então compreendê-los mal, etc. Em suma, não há livro
sem leitura, sem cérebro de leitor. Pode-se dizer que o leitor é ‘inscrito’
pelo texto que lê, tal como pelas falas dos outros (o que aliás também vale
para o cinema e outras obras de arte).
55. Os livros permitem
também escrever outros livros. Não posso escrever isto que estou a escrever,
com maior ou menor competência, senão pela razão de já ter lido muitos
livros na minha vida. Os cérebros dos autores dos livros que li, alguns já
mortos há muito tempo, são pois condição essencial das minhas
leituras-escritas, os Mortos que me habitam, inscritos duradouramente na minha
memória.
A inscrição na rede neurológica
56. Já comecei
portanto a falar do dispositivo cerebral. Ora, o cérebro não funciona sozinho,
ele está sempre engatado, enxertado numa situação dada num território
ecológico. Por exemplo, o espaço e o calendário dos usos da casa em que habito,
os seus humanos e os seus objectos, inscrevem-se no meu cérebro, traçam na sua
rede sináptica o que
Changeux designa por grafos. Também os discursos orais produzidos nessa
habitação, tanto os dos outros como os meus, se esquecem, são as suas
repetições que se inscrevem duradouramente no tempo como grafos, como memória.
Por exemplo, a da minha língua materna, com as suas regras linguísticas, tanto
as mais gerais como as mais subtis, tais que elas são essenciais para que eu
compreenda o que me
dizem e o que eu próprio digo. Essas regras, pude aprendê-las no liceu: mas já
lá estavam, inscritas (como jogos de diferenças) no uso dos discursos concretos
que eu ouvira / lera / dissera /
escrevera desde a minha infância, os quais discursos concretos esqueci
completamente. Ora, a questão mais difícil, e que é decisiva no debate sobre os
computadores, é que são os grafos que são percorridos pelos fluxos nervosos dos
(novos) discursos que ouço (ou leio), sem esses grafos não compreenderia nada, por
um lado; mas, por outro lado, esses grafos são memória esquecida, em retiro
(não presentes mas também não ausentes, já que tendo efeitos de compreensão)
relativamente ao fluxo empírico que os percorre. Retomemos o livro: inscrito no
papel, o texto, embora não ‘mexa’, não é ‘passivo’ à leitura, como se crê
muitas vezes, trata-se outra vez da diferença entre ‘ver’ e ‘ler’: circulando
como fluxo nervoso, as suas
regras e palavras trabalham no cérebro, são reconhecidas pelos grafos, os
quais portanto também trabalham. Quer dizer que aquilo que, como fluxo ‘actual’
do texto no dispositivo cerebral, é susceptível de ser reconhecido num
electro-encéfalograma como rasto de frequências eléctricas inscritas (grama, em grego), não
é senão uma parte, digamos, do que (se) está a passar no cérebro; a memória
inscrita antes como grafo, relevando provavelmente da química (se não, como
teria ela estabilidade?), deixará os seus rastos no e.e.g.?
57. Sendo um conceito
teórico necessário, precioso (é o efeito retrospectivo da repetição dos
percursos dos fluxos que permite reconhecer estes), o grafo talvez não seja
acessível à observação neurológica senão em simultâneo com o fluxo actual que
o percorre. Fazendo embora parte essencial da matéria de empréstimo cerebral,
no coração do enigma
humano, ele resistiria à oposição entre ele próprio e a inscrição actual. Já
que a rede sináptica não serve para nada sem que grafos aí se inscrevam, e
estes resultam da repetição dos fluxos, é como se os grafos se tornassem a
matéria de empréstimo (entre as redes sinápticas, eles são aquelas que são
facilmente percorridas), sem
serem por outro lado isoláveis do fluxo actual. É sem dúvida por isso que os
neurologistas confessam tanta dificuldade em ‘apanhar’ a memória. E é talvez também
a razão pela qual o cérebro é, à nascença, susceptível de ser inscrito por
qualquer língua do mundo, mas esta disponibilidade reduz-se à medida que uma
entre elas (e depois duas ou três estrangeiras) se inscreve duradouramente
(ainda que os grafos possam apagar-se por falta de uso). Ora, o neurologista, com
as suas máquinas enxertadas num cérebro a pensar, por exemplo, também não pode,
através do seu aparelho, saber o que é que ele está a pensar, nem sequer em que
língua ele pensa (M. Jouvet, estudando gente a dormir, tem de cada vez
que os acordar para saber se eles sonham ou não, e o que eles sonham). E aí
estamos no coração de um outro aspecto do debate actual que opõe neurologistas e psicólogos
(ou linguistas, analistas do discurso, psicanalistas, etc.) : os primeiros não
têm acesso específico ao material dos segundos.
58. Tudo isto
permanece igualmente válido para um cérebro que esteja a ler ou a escrever um
texto em escrita alfabética, ou então a resolver exercícios de matemática.
Nesse casos, a situação do território ecológico em que o cérebro está engatado,
enxertado, está fortemente concentrada no papel e nos traços, na mão que a
vista segue. Tal como
não há linguagem oral sem território humano habitado, sem a inscrição dos
seus usos sociais, não há tão pouco escrita no sentido corrente sem linguagem
oral, nem papel escrito, livros, cadernos escolares, etc. Também a matemática,
vimo-lo mais acima, só existe no cérebro porque existe escrita também no papel:
um cérebro não faz matemática senão com papel e lápis (ou seus equivalentes),
esses dispositivos são-lhe essenciais, ela é irredutivelmente escrita, não há
matemática puramente cerebral.
A inscrição nos circuitos electrónicos
59. Chegamos ao
computador. Deixando de lado a ficção científica, os computadores
têm necessidade, como os livros, de cérebros humanos para funcionar. Mas é o
seu funcionamento como dispositivo electrónico que trabalha em autonomia que
nos interessa aqui. O que é um computador? Digamos primeiro que é um hardware
de cabos de electrónica, em circuitos labirínticos construídos tendo em vista
certas operações, estas fazendo-se segundo um percurso entre uma entrada de
dados, um teclado, por exemplo (ou um leitor de cartões perfurados, bandas
magnéticas), e uma saída de resultados, uma impressora, de que o écran oferece
uma pré-visualização (ou ainda bandas magnéticas, cartões perfurados, etc.)
Entre os dois[38], programas de
software variados de que se escolhe um, oferecem sintaxes de operações
sucessivas a fazer sobre os dados, regulam os percursos no labirinto, os
quais exigem muitas vezes a intervenção do operador.
60. Trabalhando à
electricidade (§ 24 c), esta só conhece duas possibilidades elementares: passar
ou não passar, portanto 1 e 0. O que tem logo uma consequência bem conhecida: o
hardware ignora até a distinção entre um número e uma letra. Ele apenas recebe
do teclado 256 possibilidades, correspondendo aos octetos (bytes), combinações de oito
impulsos eléctricos simultâneos de 0/1[39]. É com esses octetos (0 1
2 . , a b c A B C + – etc., o
intervalo entre as palavras inclusive) que o software tem que fazer jogar as
sintaxes operacionais, a transposição fazendo-se por três operações elementares
do sistema lógico (‘e’, ‘ou’, ‘não’), inscritas no hardware. Os números da
aritmética estão aí
inscritos, não no sistema decimal que todos conhecemos (1, 2, 3, 4, 10, 100,
etc), mas num sistema binário que só conhece 1 e 0[40]. Por outro
lado, é necessário que todas as operações matemáticas que o hardware tem que
operar estejam, ou inscritas na própria rede electrónica, ou traduzidas
anteriormente nas que estão lá inscritas. Se ele tem que adicionar dois números, o
+ do software deve estar convertido na indicação desta operação no hardware[41]. A minha presunção é
a de que o computador, no que respeita à matemática, não faz senão
isso, e que é essa a sua positividade, a razão do seu enorme sucesso. Posto
isto, os números são susceptíveis de verdadeiras operações de
cálculo, a uma velocidade inaudita; mas não as letras das equações, que são
apenas transpostas entre os seus dois membros, segundo as regras matemáticas,
até ao momento em que sejam substituídas por números, o cálculo prosseguindo em
seguida somente com estes. É justamente o que o matemático também faz na sua matemática
de lápis e papel. Ainda aqui, não se trata de um defeito dos computadores,
mas da sua positividade
essencial.
61. Quer isto dizer
que o hardware é radicalmente inapto para ‘calcular’ com a linguagem
alfabética: as sua únicas operações – muito úteis, cada um de nós o sabe pelo
seu Mac ou P. C. – são as de receber ‘representações’ de letras, acentos,
vírgulas, etc. e espaços brancos separando as palavras, o que lhe permite ter
também ‘representações de palavras’ (e de sintagmas mais ou menos prolongados) como
sequências de representações de letras[42]. O que quer dizer que, por
razões intrínsecas ao hardware, o computador ignora a dupla articulação da
linguagem (§ 9) e os seus diferentes níveis de regras, as quais no entanto se
jogam ao nível do software, enquanto texto capaz de ser lido e escrito por um
cérebro humano. Encontramos aqui um contraste fundamental em relação ao
dispositivo neuronal: o próprio
software do computador não ‘lê’ as diferenças (§ 30), ele apenas ‘vê’ letras,
números, sinais das operações. Quando por vezes se distingue a letra
O do algarismo O, cortando este com uma diagonal (Æ), é para evitar
o risco de desatenção do operador perante uma mistura de letras e números,
enquanto que esse risco não existe normalmente para o cérebro, que lê a elipse
O como letra se rodeada de letras, em Ovo (jogo de diferenças) ou como número
se rodeado de números, em O, 31 (idem). Aquilo a que chamei ‘representação de
palavra’ implica a inexistência de diferença entre ‘significante’ e
‘signifié’ (no sentido de Saussure) – ora, esta diferença não existe na
escrita matemática, sem o quê ela não seria exacta. Se o hardware do
computador, que só conhece O / 1, é cego perante a diferença letra / número,
muito mais cego será em relação à polissemia (§§ 4-6)[43]. A polissemia
não é uma fluidez da linguagem mas algo que resulta de regras linguístico-textuais muito
subtis e precisas. Não é pois senão ao nível exclusivo do software que estas
regras, ou operações, devem ser fornecidas, explicitamente, ao computador,
como quem lhe ensina as regras elementar da gramática, uma a uma, como aliás
os linguistas o vão fazendo com bons resultados[44].
Memórias?
62. Encontramo-nos
aqui perante um caso de polissemia, o da utilização da palavra ‘memória’ nos
contextos da informática e da neurologia; é necessário dizer uma palavra sobre
o contraste entre estes dois sentidos (não exactamente ‘dois’). O que se
escreveu mais acima sobre o electro-encéfalograma (§§ 56-57) pode ser
transposto para os computadores. Com efeito, um engenheiro electrónico, com os
seus aparelhos de reparação do hardware engatados num computador, pode
analisá-lo quando um programa de software está em marcha, mas não pode saber
através desses aparelhos que tipo de linguagem informática esse programa
utiliza (no caso de admitir várias). Tal e qual como os neurologistas, pois. Em
ambos os casos, o conceito de matéria de empréstimo é o de uma rede ‘material’
(neuronal num, fios eléctricos no outro), capaz de ser inscrita por escritas ou
linguagens diversas; dum ponto de vista filosófico, dir-se-á que essas
linguagens ou escritas são imotivadas em relação à matéria de empréstimo em que
são inscritas, não lhe exigindo mais do que uma disponibilidade à inscrição[45]. São as suas
regras sintácticas que trabalham nessas matérias de empréstimo. Mas de
maneira completamente diferente. Porque, num dos casos, a memória é inscrita
por aprendizagem, e
permanece como inscrição (química)[46] essencial às
operações da leitura
textual, onde ela trabalha também em retiro. Pelo contrário, faz parte da
positividade dos computadores enquanto tecnologia electrónica, que
os seus fios não sejam afectados, modificados, inscritos
duradouramente, pelo software após a sua passagem (o que seria um ruído
infernal, em linguagem da teoria da informação). Se quiséssemos falar aqui de
grafos, seriam os circuitos construídos em pormenor pelo engenheiro do hardware.
Um dos aspectos desta positividade, é que um computador adaptado aos alfabetos
respectivos (latino, grego, cirilico, árabe, etc.) pode receber e tratar
indefinidamente qualquer escrita alfabética, sem a aprender, sem ter memória
dela, o que um cérebro humano não consegue, é evidente. O computador não lê os
textos, só vê letras, mas a que velocidade!
63. A autonomia do computador resulta das
regras que lhe são dadas pelo software (heteronomia), mas esta heteronomia não
é apagada, como na memória humana[47], ela permanece
explícita como condição das operações a prosseguir. É por isso que parece
difícil falar de ‘memória’ ao nível do hardware (RAM). É o software que
conseguer armazenar memória, em discos, bandas magnéticas, etc., portanto
sempre separada do software ‘actual’ (à maneira das bibliotecas, “toda a
memória do mundo”: trata-se de um verdadeiro armazém, o que justamente a
memória cerebral, jogando
de forma química retirada, não é de forma nenhuma), ainda que se
trate de ‘representação’ de
sintagmas ou de operações sintácticas determinadas; mas neste último caso tudo
tem que ser rigorosamente explicitado pelos linguistas, com os limites actuais destas
disciplinas, no que respeita à relação teórica e prática entre frase e texto.
Enquanto que nós, lemos e escrevemos sem sabermos linguística nem
semiótica. Desta autonomia tão nova do computador, poder-se-ia
dizer que se trata de uma ‘autonomia programada’. Há aí aleatório?
Sem dúvida, senão não seria autonomia, não seria operatório; mas é um aleatório
‘programado’ no software de modo a que os ‘dados’ sobre os quais as operações
serão feitas possam tornar-se adequados às ‘regras’ do programa, de modo a que
isso não falhe. Já que ele tem que fazer o que o operador pretende, não o que
ele, computador, quisesse.
O computador escuta mal
64. Ponhamos enfim uma
última questão, a que indicámos como d) no § 49. Até hoje, no esforço para
imitar os sistemas neurológicos, os computadores
‘trabalham’, mas não conseguem ‘escutar’: as nossas mãos pressionam os
teclados, os nossos olhos lêem écrans e impressoras, mas eles não conseguem,
apesar dos esforços neste sentido desde há numerosos anos, compreender as
nossas vozes: seria preciso que os nossos fonemas tocassem directamente os
octetos correspondentes, como fazem os toques dos
dedos nos teclados. A dificuldade reside essencialmente em que as nossas vozes
não produzem fonemas (‘iguais’ em todas as bocas), mas sons que mudam segundo
os nossos timbres e humores: é que os fonemas não são senão as diferenças entre
os diferentes sons das nossas vozes, são essas diferenças que são as ‘mesmas’,
‘iguais’, em cada uma das vozes duma mesma língua (é uma das grandes lições da
linguística saussuriana). Há aliás uma dificuldade semelhante com os scanners
ao passarem as diferentes tipografias e nomeadamente as nossas diferentes
‘letras’, quando escrevemos com caneta. Enquanto que
os nossos cérebros aprenderam a distinguir os fonemas nas vozes empiricamente
diferentes que os traçaram, nas diversas letras que as
mãos grafaram: é isto a que Saussure chama ‘significante’, essas diferenças que se repetem, como condição
necessária de entendimento. Ora, a única maneira de um computador electrónico
escutar (§ 48 b) é em alta fidelidade: os aparelhos acústicos telefónicos e de
música (ou os scanners) – ao contrário dos teclados que são indiferentes aos
dedos que possam tocá-los, a impulsão eléctrica sendo sempre a mesma –
restituem todas as particularidades ou singularidades das vozes e timbres de
cada um (ou das escritas à mão), sem que seja possível destacar um núcleo
empírico ‘comum’ a todos, porque este comum
não é justamente empírico, segundo a leitura husserliana que Derrida fez, não
identificável portanto pela corrente eléctrica. Com efeito, as diferenças entre os sons (empíricos) ou
entre as grafias (empíricas) não são nem sonoras nem visíveis. É aí, parece-me
que se joga, hélas!, a resistência aos esforços dos engenheiros electrónicos para conseguirem que os
computadores compreendam directamente a voz dos useiros (ou então a sua
escrita pessoal).
[1] Tradução do 10º capítulo de
Belo, 2007.
[2] P. Somville, Essai sur la
Poétique d’Aristote, J.
Vrin, 1975, p.46, citando R. Mac. Keon, Critics and Criticism: Ancient and
Modern, Chicago,
1952, pp. 152 ss. (reenviando ao cap. VII do “Système des beaux-arts” de Alain,
vol. II das suas Œuvres Complètes, Pléiade, pp. 237-240).
[3] Salvo recentemente o de
‘linguagem’, que em rigor só convém à oralidade, à sua ‘língua’.
[4] O que não pode dizer-se sem mais
em relação aos cérebros humanos, já que estas inscrições não são as únicas a
serem recebidas por eles, mediante transformação em electricidade e química: as
pessoas e as coisas também são captáveis (visual, auditiva e tactilmente) ‘em
directo’, pela sua ‘face’, aquilo a que os gregos chamavam eidos, o que é visto, visado (§ 13).
[5] Tal como os provérbios, por
exemplo, os poemas anteriores à escrita eram ‘inscrições’ orais, quer dizer,
textos fixados no seu ritmo de modo a serem repetidos tal e qual nos diferentes
contextos (à semelhança do escrito). Eram civilizações com técnicas de memória
muito desenvolvidas, que não se devem pois opor sem mais às sociedades com
escrita. As definições e outros enunciados de teoremas, por exemplo, funcionam
da mesma maneira: são também para repetir tal e qual, para evitar que mudem quando
muda o contexto.
[6] No sentido de S/Z de Barthes, por exemplo, ou da
leitura dos mitos ameríndios por Lévi-Strauss (1964-71).
[7] O que nem o fonema nem a letra
possuem: eles não significam nada por eles mesmos, retirados do campo da
significação e da comunicação.
[8] “= é ‘igual a’ ” , “+ é ‘a
operação de adição cujas regras são tais e tais’ ”, etc. Para os algarismos: “3
é ‘três’ ”, mas esta palavra é um adjectivo numeral polissémico como por exemplo, em 1) três
maçãs que vou comer, 2) três dos meus amigos, 3) três sonhos que tive, 4) três
filmes que vi, 5) três países com políticas convergentes, 6) as três pessoas da
Santíssima Trindade, e assim por diante, em que parece que ‘três’ não tem sempre o mesmo sentido, nem que se
trata tão pouco de ‘seis sentidos separados entre eles’, que não é susceptível
de uma operação de multiplicação ‘três vezes seis’, dando ‘dezoito entes’,
‘entidades’, ‘coisas’ (exemplo adaptado de C. Castoriadis, “ Science moderne et
interrogation philosophique”, Enc. Universalis, vol.17, p.71).
[9] “A
conquista da Europa pelos algarismos ditos árabes (um erro, já que são
indianos) começa em Toledo, cerca de 1143. O famoso zero é um deles, mas como
mostra Schärlig, não é então mais importante do que os outros. A verdadeira revolução
trazida por estes algarismos é que permitem as quatro operações por escrito,
enquanto que as cifras romanas, que eles substituem pouco a pouco, necessitam
da utilização de ábacos e fichas. Os primeiros lugares de propagação são a
Toscana, a partir do século XIV, e a Alemanha no século seguinte. Desde esse
momento, a invenção da imprensa suscita livros de aritmética, enquanto que até
esse momento, só se dispunha de manuscritos, primeiro nessas duas regiões e a
pouco e pouco em toda a Europa. E em 1585, quando um flamengo inventou as
fracções decimais, a conquista termina” (recensão em
castelhano de Alain Schärlig, Les chiffres arabes à la conquête de l'Europe
(1143-1585), PPUR, 2010, na Teia).
[10] Este não é senão um entre os
numerosos sistemas possíveis; um outro é o sistema binário dos computadores,
jogando apenas com 1 e 0 (§ 36n).
[11] Para os exemplos simples que
dou; não creio que estes raciocínios sejam infirmados pelas matemáticas
modernas, que ignoro.
[12] E aí está a condição para que
essas ciências sejam susceptíveis de técnica, o que não é o caso se a
matemática utilizada for de tipo estatístico.
[13] Sem dúvida, a Física
desenvolveu-se ao encontrar equações mais gerais permitindo unir campos antes
isolados na clausura das equações. Isto não me parece infirmar a demonstração
que estou a tentar. Poder-se-ia aliás dizer-se que o princípio de discernimento
das etapas da história da física é, por um lado, o do estabelecimento de novas
equações e portanto de novas regiões físicas, e por outro lado, o do
estabelecimento de equações mais gerais integrando e unificando algumas regiões
físicas cujas equações se revelam ser casos particulares daquelas que se acabam
de descobrir (Newton em relação a Einstein, por exemplo célebre).
[14] Como o mapa geográfico é e não é
o território : sem o mapa da Europa, não saberíamos nada dela.
[17] A articulação do cinema e da
banda desenhada é paralela à das narrativas em sequências e capítulos, o que se
chama narratividade, já do nível do discurso, acima do da frase.
[19] Belo, 1991b, § 24.
[20] A da Antiguidade greco-romana e
a nossa.
[21] Bernard Stiegler, “L’image
discrète”, in J. Derrida e B. Stiegler, Écographies, de la télévision, Galilée-INA, 1996, p. 168, que
cita A. Bazin (“a objectividade do objectivo” da fotografia) e R. Barthes
(“isto sucedeu”, noema intencional da fotografia). Já não é o caso da imagem
numérica, que, tornando-se, por assim dizer, fotografia desenhada, retorna à
tradição com que a química da luz tinha rompido.
[22] Mesmo as máquinas automáticas
precisam de vigilantes.
[23] O que pode ser verdade inclusive
da matemática: uma barragem, uma ponte, serão tanto mais belas quanto o seu
cálculo tiver sido matematicamente económico. Se bem me lembro, e me fôr
permitido, tive uma verdadeira emoção estética numa aula sobre estruturas das
pontes, em que Edgar Cardoso provou com equações como a sua linha de influência
(curva matemática dos momentos das forças às quais serão submetidos) coincide
com a sua flecha, a curva da deformação elástica do seu eixo.
[24] É a independência
entre estes dois mundos que pede um sistema de adaptadores com um código,
proporcionando “uma significação única a cada unidade elementar dos dois
mundos” (ibidem).
[25] Poderia
parecer que se trata das ‘matérias de empréstimo’, mas de facto trata-se das
próprias inscrições enquanto relativas à vida das gentes (da cena da habitação
que as artes jogam na cena da inscrição).
[26] F. Belo, 1994.
[27] Aristóteles detesta
a poesia ‘lírica’, os sentimentos e experiências pessoais dos poetas.
[28] Coerência do
conjunto e do seu contexto, evitando absurdos e prodígios sobrenaturais.
[30] É o que a publicidade macaqueia, horrível de ouvir.
[31] Nem mercadorias nem dinheiro; deste
apenas os números, consoante condições institucionais exteriores à transmissão
(notas ou cheques não são transformáveis em corrente eléctrica).
[32] Em português, como nas outras línguas latinas, deve-se dizer
‘médias’, e não à americana, já que não há nenhuma regra de transformação de
palavras latinas em inglês (o cúmulo do colonialismo é aqui o brasileiro
‘mídia’).
[34] A. Gorz, 1980, e F. Belo, 1987,
pp. 327-44.
[35] Aristóteles fez dela um termo
filosófico que os latinos traduziram por ‘matéria’.
[36] É pois sobretudo o organismo
inteiro que é uma máquina (com regras que jogam para fazer face ao aleatório),
e não o cérebro sozinho. Teria sido preciso pôr aspas em “cérebro” no
seguimento do texto para o assinalar.
[37] O que se deixa aqui de lado, por
razões de economia do próprio debate, terá no entanto relação com as
dificuldades que se encontrarão mais adiante.
[38] E supondo um logicial tipo
Windows (de que não sei nada).
[39] Um pouco como os sinais de
Morse; eram esses octetos que se inscreviam nos cartões perfurados na época dos
antigos computadores.
[40] 2 é 1+1=10, 3=11, 4=100, 8=1000,
32=100000; quer dizer, 2n = 1 seguido
de n zeros. Em seguida, 33=100001, 34=100010, 35=100011, etc.
[41] Presumo além disso que todas as
outras operações com números são convertidas em adições, em correspondência com
a sua definição aritmética.
[42] Tal como aliás pode jogar com
desenhos, fotografias, etc. segundo processos que desconheço.
[43] Isto torna-lhe muito difíceis as
tarefas de tradução de textos de tipo literário ou de língua corrente, e é isso
a maior infelicidade, porque a tradução automática permitiria resistir muito
melhor ao domínio imperialista da língua inglesa, sem perder as suas vantagens
enquanto língua internacional..
[44] Penso nomeadamente nos grandes
quadros de distribuições sintáctico-semânticas elaborados pela equipa de
Maurice Gross.
[45] Quer dizer, e isto tem relação
com o conceito de máquina proposto logo no início, que nem a biologia do
cérebro nem a rede electrónica do computador determinam (no sentido da
causalidade mecânica clássica) os fluxos que os percorrem. É a importância do motivo
da inscrição: esta vem de fora, impede a oposição entre interior e exterior no
funcionamento dos ‘dispositivos’, cerebrais ou electrónicos.
[46] A electricidade neuronal é feita
de iões de sódio e potássio, o que a presta a reacções químicas nas sinapses,
ao contrário da electricidade industrial, feita de electrões.
[47] A memória da nossa língua só nos
serve porque as vozes dos outros que no-la ensinaram se apagaram, como condição
da autonomia da nossa fala.