quinta-feira, 26 de março de 2015

PALAVRAS, NÚMEROS, MÚSICAS, IMAGENS CÉREBRO, LIVRO, COMPUTADOR



  
I –   Do ponto de vista da estrutura
II – Do ponto de vista semiótico
III – Do ponto de vista da circulação
IV Do ponto de vista do dispositivo : neurónios, papel, circuitos electrónicos



1. Entre os numerosos usos sociais que as sociedades como as nossas transmitem de geração em geração [1], renovando-os sem dúvida e acrescentando-lhes invenções novas que se tornarão usos a transmitir também, poderemos distinguir os que têm finalidades técnicas de habitação de outros usos, como os quatro enunciados no título, também se reproduzindo de geração em geração e muito mais se alterando ainda porventura, cuja especificidade poderia ser dita talvez como Alain do mimêma pictural: “uma inscrição numa matéria de empréstimo”[2]. Esta matéria de empréstimo, acrescentaria eu, pode ser quer sonora, quer vi­sual quer táctil (Braille). Com efeito, a linguagem oral – enquanto sistema de diferen­ças linguísticas, os significantes inscreve-se na matéria sonora que ela re-elabora, tal como a escrita e as imagens (pintura, desenho, fotografia, filme) em superfícies visíveis, a música sendo ainda um outro exemplo de inscrição sobre matéria sono­ra.
2. Estranhamente, estas diversas “inscrições numa matéria de empréstimo”, estes usos que não são como os outros, não parecem ter um nome comum, como se a cultura ocidental não tivesse dado pelo que as liga enquanto usos semelhantes[3]. De certo modo, também são técnicas que implicam saber e habilidade, ins­crições de habitação que sobrevivem à morte das gerações, à maneira dos utensílios, dos diversos edifícios, do urbanismo, etc. Mas estes são “inscrições numa matéria”, como dizer? específica para funções de ha­bitação determinadas, muitíssimo variadas segundo as socie­dades: ‘ma­térias funcionais’, digamos, não se poderia falar de em­préstimo a seu propósito. Todavia estas palavras, ‘técnica’, ‘habitação’, ‘uso’, podem fa­zer pensar em ‘instrumentos’ ou em ‘coisas’, ou até em ‘meios’, e é isso que as inscrições não são de forma nenhu­ma: sendo aquilo de que se ocupam a escola e o que se pode chamar instituições de circulação cul­tural, elas são na verdade os únicos ‘produtos’ – e isto serve para precisar um pouco mais esta noção comum – que podem deixar a sua “matéria de empréstimo”, serem transformados em electricidade e enviados a longa distân­cia (‘tele-’) e voltarem de seguida à sua “matéria de empréstimo”, os únicos as­sim susceptíveis de serem manipulados por computadores, de circu­larem na Teia global[4].

DO PONTO DE VISTA DA ESTRUTURA

Linguagem duplamente articulada: poema e definição
3. Para delimitar a diferença entre a linguagem duplamente ar­ti­culada e as outras formas de inscrição socialmente duráveis, ocupar-me-ei aqui um pouco do texto poético, aonde encontramos a linguagem (oral e escrita) na sua maior força e complexidade. Diria de modo aproximado que se chama poema a um texto em que, por razões intrínsecas, não se pode separar o jogo signifi­cante – sonoridades rítmicas e aliterantes – do jogo do sentido ou do pensamento, nem tão pouco separar oralidade e escrita[5]. Poder-se-á objectar que qualquer texto é uma tal impossibi­lidade; é certo, mas o poema é o texto em que esta resistência é, de certo modo, mais visível, mais palpável, no sentido em que ele resiste à tradução exacta, à paráfrase, ao resumo em que se perde enquanto esse texto, esse texto-pensamento. Dito de forma mais técnica, o poema é o texto que joga a fundo com a unidade da dupla articula­ção da linguagem humana (Martinet), a dupla economia da repetição de dife­rentes significantes, entre os fone­mas/letras e as palavras, por um lado, entre as palavras e as fra­ses/textos, por outro, com a unidade indissociável do significante e do ‘signifié’, termo inventado por Saussure para o distinguir de ‘signification’, significado lexical que reenvia para o chamado referente.
4. Assim, por exemplo, um poeta terá a possibilidade de jogar com as diferenças significantes de basta, bastante, bastar, bastão, bas­tardo, besteiro, besta, bosta, busto, bispo, bicho, palavras próximas nos seus significantes e cujos sentidos podem aproximar-se ou não entre eles; este tipo de jogo é bastante diferente no entanto do que há entre os opostos como bastante / pouco, por exemplo. É um jogo que pertence àquilo a que Derrida chamou disseminação, de que faz parte também a polissemia, segundo a qual o mesmo significante muda de ‘signifié’ (Belo, 1991a) segundo o contexto em que se insere, quer se trate de uma palavra ou de uma citação mais longa. O poema seria pois um jogo pensante de disse­minação, seja qual for a consciência que o poeta tenha disso.
5. Uma outra consequência da disseminação numa linguagem duplamente articulada, é a impossibilidade de dar uma fronteira ao poema: a sua escrita ou leitura implica relações essenciais a outros textos, poéticos ou não, quer ao nível fonético e das palavras, quer ao da sintaxe-semântica e dos códigos textuais[6]. Sem esta relação – sus­ceptível de uma certa transgressão –, que se constrói  a partir das lei­turas e falas anteriores do poeta e que é rigorosamente incontrolável por ele, nenhum poema seria legível. Como qualquer texto que seja, sem cisões possíveis. Mas é sem dúvida também o caso dos outros jo­gos de inscrição, a escrita matemática sendo aquela que melhor se defende da chamada intertextualidade.
6. As ciências e a filosofia não teriam sido possíveis sem uma arma de defesa contra a polissemia (tão im­portante para o narrativo e o discursivo, os textos que dizem o acontecimento e a experiência singu­lar, respectivamente): essa arma foi a definição, criação de fronteiras à volta da polissemia da palavra definida para não reterem senão um só sentido. O mesmo é dizer que os textos gnosiológicos jogam em sentido inver­so da poesia: eles privilegiam o ‘significado’ assim definido, o con­ceito (a ideia, a representação mental europeia tem aí a sua origem), e desconfiam do significante, do seu jogo de disseminação, das pala­vras que mudam segundo as línguas. Esta forma de fazer tende para a universalidade, uma das suas incidências é a exclusão para fora das suas fronteiras de qualquer marca singularizante: ‘eu’ e ‘tu’, ‘aqui’ e ‘agora’, o ‘presente’ e o ‘aoristo’, os tempos e os modos dos verbos (Benveniste, 1966, Belo, 1991a). A invenção do texto gnosiológico – o dos saberes filosó­fico, lógico e científico – foi assim uma ruptura com as narrativas e os discursos situados temporalmente e espacialmente; é a escrita do que valerá unicamente pelas suas definições e argumentos, tanto faz quando, tanto faz onde, tanto faz para quem. Trata-se de fic­ção, já que ao compor-se como intemporal e válida em qualquer lu­gar, ela denega a sua própria situação de escrita. Sem dúvida que nós nos tornámos mais modestos nas nossas pretensões ao conhecimento científico, que sabemos ser histórico e relativo, no entanto, esta estrutura gnosioló­gica dos textos científicos continua a ser necessária, definidora da ciência como projecto de saber, aberto há vinte e cinco séculos pelos Gregos. Desde o “que ninguém entre aqui que não seja geómetra” ins­crito no frontispício da Academia de Platão até à fenomenologia do matemático Husserl, passando por Renatus Cartesius, aquele que geometrizou a ál­gebra com o seu sistema de coordenadas, por Kant o newtoniano e por alguns outros, o privilégio filosófico do conceito teceu uma aliança, cheia de “finesse”, com as matemáticas, com “o espírito de geome­tria” pascaliano. 

A escrita matemática
7. A escrita matemática não é duplamente articulada: contra o que parece à primeira vista, ela ignora o nível fonema / letra. Sem dúvida que o seu nível mais elementar só conhece, por regra, um único carácter, mas ele corresponde às palavras da linguagem du­plamente articulada, já que ele tem um sentido[7] atribuído conven­cionalmente por uma definição prévia, feita aliás em discurso du­plamente articulado (por exemplo, “R é o raio de uma circunferên­cia”). A matemática só conhece pois um nível, o que articula pala­vras e frases (equações). Por exemplo, a equação da circunferência cujo centro está no cruzamento dos eixos das coordenadas Oxy  (2 é expoente, x ao quadrado, etc)
x2 + y2 = R2
As equações podem ser transformadas, segundo regras sintácticas co­dificadas,                           
                                                                                    _______
x2 = R2 – y2       e     x= ±  V R2 – y2
por exemplo, de modo a que estas equações sejam equivalentes. Isto implica que uma equação (ou um sistema de duas ou mais equações, isso não altera nada aqui) seja fechada em relação a outras, que possuam outras definições convencionais (R pode ser a resis­tência eléctrica em equações da Electro-estática, por exemplo). A ma­temática não forma pois texto a outro nível que não seja o das suas frases (as suas equações), pelo menos se definirmos texto como uma sucessão de frases relacionadas entre elas mas que não se repetem quanto ao sentido. Tudo isto implica que a matemática tenha só uma articulação, e esta é uma primeira boa razão para que o termo ‘linguagem’ não lhe convenha em rigor. Ao contrário da lin­guagem duplamente articulada e radicalmente imotivada, o signifi­cado matemático é, de jure, prévio (na língua do matemático) ao significante, este sendo justamente uma convenção: portanto nem polissemia nem disseminação (excepto em caso de erro) por defini­ção da convenção matemática, concebida para evitar todo o efeito polissémico. Quer isto dizer que ela foi concebida para ser monossé­mica, unívoca, em suma exacta. Estou a descrever a sua finitude, a sua positividade, e não defeitos! Ela é também exaustiva, o que o discurso duplamente articulado, estruturalmente elíptico, não pode ser: não se pode nunca dizer ‘tudo’ sobre o que quer que seja.
8. A matemática foi também concebida para ser exclusivamente operató­ria, o que lhe vem de uma característica sua, a de ser composta por caracteres, quer dizer, de ser essencialmente uma escrita, implicando os olhos, as mãos, um lápis, o papel ou similar, em suma os instru­mentos da matéria de inscrição; se somos capazes de resolver men­talmente certas operações simples, isso não é no entanto verdadeiro para a maioria dos casos – multiplicar 3197 por 7913, achar a raiz quadrada de 7 ou de 23, resolução de equações, etc. –, que se tem que fazer es­truturalmente por escrito. É certo que ela tem necessidade, na colo­cação dos problemas, na condução das suas operações e na interpre­tação dos resultados, ela tem necessidade da oralidade da linguagem humana, que lê ‘dois mais dois é igual a quatro’ em 2+2=4. Mas esta oralidade não joga na operação matemática, que é exactamente a mesma para um português ou para um japonês. Puramente conven­cional – quer dizer que ela exige línguas duplamente articuladas a montante e a jusante – , a escrita matemática é universal em relação a essas línguas, ela não precisa de ser traduzida: 3 197x7 913 = 25 297 861, é igual para portugueses e franceses e não é a mesma coisa que ‘três mil cento e noventa e sete vezes sete mil novecentos e treze é igual a vinte e cinco milhões duzentos e noventa e sete mil oi­tocentos e sessenta e um’ em português, porque em francês diz-se ‘trois mille cent quatre-vingt diz sept multiplié par sept mille neuf-cents treize est égal à vingt-cinq millions, deux cents quatre-vingt dix-sept milhe, huit cents soixante-un’. Sendo operatória, ela não é pois ‘pensamento’ no sentido corrente do termo, o qual só funciona nas línguas duplamente articuladas; estas no entanto são necessárias para estabelecer as convenções das características matemáticas, tal­vez não para ‘seguir’ as operações (os computadores calculam ‘sem língua’). E é uma outra boa razão para que o termo ‘linguagem’ não lhe convenha em rigor.
9. O que são então as ‘palavras’ matemáticas, com as quais se escrevem as frases-equações? Há caracteres sintáxicos, os que indicam as operações (+, =, o traço das fracções, os expoentes, f(x), etc.), segundo regras exactamente convencionadas[8]. Depois, há duas espécies de caracteres semânticos: primeiro, os algarismos[9]. Nós usamos nove, segundo o sistema decimal árabe, ao qual por razões de economia, se acrescentou o algarismo vazio 0, para preceder o primeiro e fazer o décimo como 10 (e mais adiante o 20), depois faz-se seguir duas vezes o primeiro como 11, etc., de modo tal que os números de vários algarismos parecem uma palavra com vários caracteres, não sendo de facto mais do que uma convenção para as operações de adição (741=700+40+1)[10]. Os números inteiros definem-se a partir dos números elementares (os dedos da mão) por adição de 1 ao an­terior (n+1), os outros por divisão ou outra (1/3, raiz quadrada de 2, etc.). Em seguida, as letras. Estas podem ser constantes (a substituir por um número que, num problema concreto, tal como R para uma circunfe­rência dada, é sempre o mesmo) ou variáveis (que são também para substituir por números, como x e y no exemplo: para cada valor de y encontra-se, pela resolução da equação, dois valores simétricos para x, o conjunto dos números que assim achamos permitindo o desenho da circunferência em questão). Quer dizer, as letras em matemática valem por números, conhecidos ou “incógnitas”, e a resolução de uma equação consistirá, como tendência pelo menos[11], em chegar a resultados numéricos pela substituição progressiva e regrada das suas letras.
10. O que é então uma equação (ou um sistema de  equações)? É uma frase–texto, cuja constelação das variáveis define um tipo de problemas a resolver. E nisso se basta, nisso ela é exacta, é bem a sua finitude, a sua fecundidade. Por exemplo, na ciência física, a cada variável corresponde uma dimensão mensurável segundo padrões convencionados (metro, segundo, grama, ampère, etc.), as medidas de  experimentação dando os números que permitirão a resolução dos problemas[12] da região da física à qual a equação pertence. Em matemática, como nas ciências que a utilizam, os problemas são iso­lados uns dos outros, como as suas equações: trata-se de fragmentos operatórios. Como se disse, que as matemáticas não permitem elaborar textos. A resolução de um problema matemático consiste em trans­formar uma frase, uma equação (ou um sistema de várias equações), noutras frases ou equações rigorosamente equivalentes. Nomeada­mente as letras, constantes ou variáveis, devem ser adequadas a cada caso (pelo menos numa região restrita da física, da geometria ou ou­tra). Sem o quê depressa se esgotariam as letras dos alfabetos latino e grego. Em resumo, as matemáticas são essencialmente fragmentárias : cada equação (ou sistema de equações) é autónoma em relação às outras[13].

As imagens
11. É o quê, uma imagem, precisamente? Já Platão punha a questão no Sofista, as imagens (eikona) como os discursos (logoi), para saber como podiam ser falsos. Como podiam os Sofistas enganar os jovens? (234c). Para responder, ele introduz, em vez da oposição exclusiva (de Parménides) entre ser e não-ser (ou é um ou é outro), a diferença não exclusiva entre o mesmo e o outro (diferenças suscep­tíveis de mistura recíproca, de terem algo em comum). O que nos permitirá dizer que, a imagem sendo outra do que a coisa de que ela é a imagem, ela é ao mesmo tempo o mesmo do que essa coisa (sem o quê ela não seria uma imagem de, não seria nada, apenas riscos feitos ao acaso) e o seu outro (a sua imagem, visto que se separa dela, se desloca para outro lado, pode sobreviver-lhe, etc). A imagem é e não é a coisa[14]. Imagem verdadeira, se a sua composição – a mistura das cores e das linhas e nomeadamente as suas proporções – permanece a mesma do que a da coisa, falsa se não for esse o caso. Como para o dis­curso, que é o que de facto interessa Platão neste texto: aqui a mistu­ra é dupla (assinalada aliás em passos diferentes do texto), entre le­tras para construir palavras (e esta mistura depende de uma arte e das suas regras, não é de qualquer maneira) (253a), entre nomes e verbos para fazer uma frase (262a-b): se a mistura é boa, adequada ao que ele diz (“Teeteto está sentado”), o discurso é verdadeiro, se não (“Teeteto voa”), é falso. O mesmo é dizer que Platão, para fazer a distinção decisiva entre discurso verdadeiro e discurso falso, põe o dedo na dupla articulação da linguagem, o que nos permite estabele­cer uma diferença entre imagem e discurso: este articula-se duplamente a partir de elementos (fónicos: os fonemas, ou gráficos: as letras) que não são imagens de nada, que permanecem absoluta­mente imotivados em relação às coisas que as palavras designam ou nomeiam (como as diferenças entre as diversas línguas atestam). É esta dupla articulação que permite à linguagem, ao discurso, produ­zir sentido, pensamento. Também o nome é e não é a coisa nomea­da, mas de um modo muito diferente do das imagens: o mesmo nome “cão” pode designar cães bem diferentes, para designar ‘este’ cão, são-lhe necessários determinantes (artigos definidos, demonstrativos) no discur­so. Não a imagem: a de um cão, é a deste cão (quer ele exista ou não, pode tratar-se  de um desenho inventado) e mais nenhuma outra. Toda a imagem é singular. Mas não pelo facto do seu objecto ser par­ticular (os discursos também falam habitualmente de objectos particu­lares): podem fazer-se centenas de fotografias ou de desenhos de uma mesma personagem, com enquadramentos e perspectivas diferentes, cada uma destas imagens é singular (do mesmo modo podem dizer-se ou contar-se numerosas coisas desse mesmo personagem). A imagem não tem articulação (como têm a linguagem, a matemática e a música), motivo que implica linearidade e discreção; não é susceptível pois de comutações, não consistindo senão na sua visibilidade, na sua ‘imagética’[15] (o que se ‘vê’ numa imagem, o seu conjunto de traços-cores-sombras na superfície) ; uma imagem não é ‘resumível’, não é traduzível nem transferível para ou­tra coisa, ela não é susceptível de polissemia, não tem sentido, não tem pensamento discursivo.  Ela basta-se a si mesma, não pede outras imagens para ter sentido de imagem, mais frequentemente uma legenda dizendo o contexto: é uma legenda de narratividade, dita ‘guião’ quando ‘guia’ uma sequência fílmica de imagens. Quanto ao dis­curso (o do guião, por exemplo), este relaciona-se com a imagem do mesmo modo que com a coisa: ela pode ser nomeada, descrita, permanecendo outra do que o discurso que a diz. É sem dúvida por isso que as tentativas semióticas sobre as imagens têm, ao que parece, bastante dificuldade em se estabelecerem[16].
12. Não há imagem ‘pura’. Por um lado, não há imagem senão em composição, em contexto de imagens, num plano, como se diz em linguagem cinematográfica, este contexto sendo habitualmen­te delimitado, enquadrado num rectângulo (a escultura é outra coisa); o jogo das diferenças contextuais entre as diversas imagens de um mesmo plano tem efei­tos sobre as ‘imagéticas’ respectivas que mudarão se o plano muda, se uma das imagens se desloca para outro contexto. Quer isto dizer que um realizador, tal como um fotógrafo ou um pintor, joga com as suas imagens enquadrando os seus planos (perspectiva, grande plano ou panorâmico, luz, etc.), já que o rectângulo-clausura exclui sempre muitas imagens do contexto da realidade filmada ou a pintar. Como joga também com elas em relação ao contexto das sequências de planos, tanto no jogo da câmara como no da montagem. Não há pois imagens-em-si, não há senão planos de imagens e sequências de pla­nos. Compor um quadro, uma fotografia, um filme, é sempre selec­cionar entre numerosas possibilidades. Desenhar uma imagem sem contexto, sozinha, ou apagar o seu fundo numa fotografia, não é se­não uma dessas possibilidades.
13. Por outro lado, não há tão pouco imagem ‘pura’ por ela sempre implicar, no seu contexto de planos, jogos de forças, de afectos, de conflitos e de amores, de desejos e rivalidades. Nós não temos imagem de nós mesmos: o nosso retrato, olhamo-lo ‘como’ o de outro que não conhecemos ‘tal’ como a imagem no-lo mostra. A imagem é sempre imagem de um outro de que se visa a face, o visto, o aspecto, o eidos, diziam os Gregos. Tomemos de Rorty o exemplo aristotélico do conhecimento que se pode ter de uma rã que se olha. Recebe-se o seu eidos, a sua ‘forma’, sem no entanto nos tornarmos numa rã (como acontece à cria desta rã, que também dela recebeu o eidos). Mas tornamo-nos de algum modo rã por este eidos recebido, quando reconhecemos, com um mínimo de familiaridade, outras rãs. A rã -nos a sua imagem, que se torna uma ‘parte’ de nós, do nosso ‘imaginário’ como se diz, ela agarra-nos, prende-nos, liga-nos, como o sabemos quando so­nhamos com ela, quer dizer, quando uma imagem de rã (compósita tal­vez, deformada, pouco importa) vem, de nós e em nós, com uma ni­tidez e uma intensidade extraordinárias, tomando a iniciativa, se pode dizer-se, movendo-se, fazendo ruídos, etc. A coisa dá-nos a sua imagem e prende-nos a ela, modifica-nos com ela. Mas a rã encontra-se numa bela pedra, na margem do rio onde assim fomos captivados pela rã como o Principezinho, e eis que nos tornamos pedra, rio, que nos separamos da rã: a sua ‘imagem’ permanece grafada em nós, fica ‘nós’, sem perder a rã (senão já não seria uma imagem), mas perdendo-a na sua empiricidade real, reduzida, em linguagem de Husserl; a rã ‘morre’ para nós, esta ‘morte’ sendo a condição da sua sobrevivência em nós, tornada memória-nós. Porque o nosso saber, o nosso conhecimento no que respeita às coisas, às pessoas, é constituído pela amálgama dessas imagens-nós. Tomei o exemplo da rã, parece evidente que tudo isto é ainda mais forte nas nossas relações com os outros humanos, tecidas de desejos, de afectos, de rivalidades, etc., aos quais estamos ligados por essas imagens-nós, são elas sobretudo que vêm sonhar nos nossos sonhos.

As músicas
14. Apesar da minha ignorância, é interessante caracterizá-las para chegar a uma consideração geral deste conjunto assaz heterogé­neo “de inscrições numa matéria de empréstimo”. Tal como a lin­guagem oral, também ela é feita de diferenças-repetições sonoras, que se dão numa linearidade sucessiva (de espaço e de tempo, de retenção e de anticipação), a da melodia­vel intermediário, o das palavras. Com efeito, as ‘notas’ são sons ele­mentares (não segmentáveis) que não são imagem de nada; todavia, em vez das modulações da voz que fala (aperto maior ou menor da glote, vi­bração das cordas vocais, posições diversas da boca...), a música joga nas diferenças-repetições temporais dos sons em extensão (breve, col­cheia, fusa, etc.), os seus intervalos, ritmos e outras medidas, nas di­ferenças-repetições de frequência, entre grave e agudo, da escala mu­sical (dó, ré, mi...), nas diferenças-repetições de timbre (espectro-harmónico, mudando segundo as vozes e os instrumentos) e de am­plitude (intensidade dos acentos). Essas diferenças-repetições sonoras não se prestam a formar palavras que reenviassem a outra coisa que não a música; é o que permite também a harmonia, parece-me, a si­multaneidade de mais duma linha melódica, o que a linguagem oral exclui firmemente, sob pena de não haver comunicação. E per­mite também o canto, combinação da linguagem oral e da música numa só sucessão sonora em que se inscrevem os dois tipos de diferenças ; se se imagina o canto por uma voz que não seja acompanhada por um outro instrumento musical, dir-se-ia que é a própria palavra que é musicada pela melodia: os mesmo sons e no entanto dois registos de diferenças.
15. Estas indicações muito simples permitem compreender uma diferença capital da música em relação aos outros jogos de ins­crição: só ela é rigorosamente imanente, não valendo senão pela arte da sua composição (e da sua interpretação), susceptível de muitas espécies de músicas diferentes. Excepto talvez para as correspondên­cias entre músicas e emoções, devidas às cumplicidades entre as osci­lações de umas e outras, a imanência faz da música uma arte ‘abstracta’, como se diz, logo universal por direito, ‘a arte’ sendo o que nela nos ‘co-move’.

Um quadro quase sinóptico
  16. Para concluir, tentemos uma comparação quase sinóptica entre estes diversos jogos de inscrição, colocando-os numa tabela oferta a um olhar (a uma óptica) de conjunto (sin-). ‘Quase’, porque encontramos aí dois que só dizem respeito à sonoridade. Por outro lado, entre aqueles que respeitam à visibilidade (e por vezes ao tacto: o alfabeto Braille testemunha-o, e ainda a escultura), as imagens des­tacam-se em que, jogando na superfície ou plano, elas não se articu­lam segundo a linearidade, não são susceptíveis de segmentação em elementos simples e discretos; o que é sem dúvida a razão pela qual elas são singulares. Ter-se-ia assim um quadro das possibilida­des de articulação de unidades discretas segundo a linearidade: a lin­guagem oral e dupla­mente articulada, entre fonemas, palavras e fra­ses, a escrita matemá­tica que se articula entre palavras e frases, a música entre fonemas e frases, as imagens enfim que não se articu­lam linearmente[17]. Em relação ao que é próprio da escrita, poder-se-ia encarar os seus diversos espéci­mens históricos segundo um percur­so completo deste quadro. As ima­gens da pintura e do desenho se­riam as primeiras escritas conheci­das, os hieróglifos a passagem a fi­guras podendo significar (os discursos sobre) as coisas visíveis numa se­quência linear; os carac­teres chineses corresponderiam aos da ma­te­mática, cada ‘conceito’ sendo significado pelo seu carácter, de tal modo que, ao que parece, a mesma escrita pode servir para dialectos diferentes, que nem  sempre se compreendem entre eles[18].  O alfabeto chega enfim à dupla articu­lação e à sua capacidade de dupla discreção, que lhe permite descrever as coisas. Quanto à música, fica à parte, na sua ima­nência altiva, mas encon­trou também uma escrita que lhe é tão ade­quada que os seus sons são designados através desta notação, como ‘notas’. E é assim que o quadro se pode tornar sinóptico.
17. As quatro casas deste quadro parecem irredutíveis entre elas, a música sendo, ao que parece, a que mais resiste a qual­quer tentativa das outras inscrições que quisessem dobrá-la: não se pode ‘dizer’ uma música, nem desenhá-la, colori-la, filmá-la; ela presta-se no entanto a um certo tratamento matemático, desde os Gregos. A linguagem pode ler as equações matemáticas (sem as subs­tituir, como vimos), pode descrever as imagens mas pondo em suces­são o que se dá numa composição simultânea e deixando sempre muitos restos, dado o seu carácter elíptico estrutural (quer dizer que a linguagem se comporta face às imagens como a qual­quer outra realidade). A escrita matemática conseguiu formular pro­posições lógicas, como já o tinha feito para as figuras geométricas (cartesianismo) e parece estar à medida de fazê-lo doravante para qualquer imagem electrónica (imagens ditas numéricas: decomponí­veis segundo pontos e recomponíveis, sem que elas se tornem todavia unidades discretas). Enfim, se as imagens, cinema­tográficas por exemplo, conseguem, de uma certa maneira, redobrar as narrativas, os discursos não lhes resistem menos. “Eu perguntava-me em que é que ela acreditava ao certo” ou “a essência não é visível dela mesma, por definição”: não haverá nestes enunciados uma única palavra susceptível de ser substituída por uma ou várias ima­gens.
18. A linguagem oral tem um privilégio, sem o quê o logocen­trismo seria irracional: é o único destes jogos que é organizado se­gundo um retiro no próprio sistema (os fonemas), tendo se lhe juntado histori­camente os alfabetos (letras). Daí que ela seja a única a jogar um papel es­trutural na reprodução de todos os outros usos sociais, incluindo imagens, músicas e matemática; daí também que só a es­crita alfabética tenha permitido historicamente o texto gnosiológico da filosofia, lógica e ciên­cias, onde no entanto as figuras geométricas e astronómicas pelo me­nos, e a aritmética jogaram um papel irredutível à dupla articula­ção. Privilégio também pelo facto de toda a gente falar esta lingua­gem oral, segundo a sua autonomia singular, enquanto que os outros jogos exigem especialistas mais ou menos dotados. Mas este privilégio tem um preço grande: sendo a única universal no sentido que aca­bamos de dizer, de que toda a gente tem parte nela essencialmente, ela é a única que não é universal de direito: varia segundo as comu­nidades, segundo os povos, o que a torna útil dentro da cada comu­nidade é o que se torna obstáculo entre comunidades estrangeiras. O que o retiro doa, a autonomia de cada um na comunicação, também lhe tira. É um escândalo para a razão: todos os outros jogos de ins­crições são por direito universais (embora obstáculos culturais po­dendo apresentar-se de facto). Foi contra este escândalo de Babel que a razão europeia inventou a representação.
19. O quadro deixa-se ler também segundo a economia da ver­dade – respeitante à relação com os outros usos – e da liberdade – respeitante à composição segundo regras. Designemos os diversos ní­veis das unidades lineares (abaixo da composição do discurso ou da melodia): o nível mais baixo é o das unidades imotivadas em relação a outras coisas, o nível intermediário é o das unidades de referência, o nível da frase enfim é o das unidades que fazem sentido. A liberdade seria máxima na música, sem unidades de referência, dependente apenas do sentido das frases musicais e do jogo de composição da melodia: a sua ima­nência, excluindo qualquer relação de verdade com os outros usos, in­terditaria uma qualquer ‘objectividade’ do erro, que não poderia re­sultar senão de falhas de gosto antropológicas, respeitantes às regras estéticas de composição; não haveria pois também mentira, toda a música sendo estruturalmente ficção. As matemáticas estariam nos antípodas. Sem unidades imotivadas, as suas unidades de referência têm uma relação estritamente definida pelas suas convenções ao uso de contar unidades ou de medir: as suas regras derivam dessa relação e jogam de tal maneira que não há praticamente liber­dade que não seja ‘erro objectivo’. Por razões que parecem inversas, porque aqui a exactidão torna mínima a ficção (excepto nas conven­ções de invenção), também não haveria mentira nas matemáticas. 



linguagem oral
escrita
matemática
música
imagens

unidades 
de sentido

    frases
equações
frases musicais
     ø
unidades
de referência

  palavras
números
medidas
       ø
imagens
unidades
imotivadas
fonemas

       ø
   ‘notas’
     ø

sonoridade

     sim
      ø
     sim
      ø
visibilidade

      ø
     sim
      ø
    sim
escrita
que redobra

alfabética
caracteres chineses
notação musical
pintura
hieroglifos
relação 
outros  usos

imotivado: 
qq. uso

motivado: contar, medir
 imotivado:
imanência
motivado: usos  visíveis   


20. A relação referencial das palavras da linguagem e das imagens às coisas (muito variáveis) implica nelas um outro registo da questão da verdade. Como argumentei noutro lado[19], a capacidade de dissimulação é necessária à autonomia pertinente de cada um, à sua liberdade, o que implica portanto capacidade de mentir, de guardar segredos, de fazer ficção, cada sociedade dando-se os seus critérios de verdade, morais antes de mais (a mentira que prejudica outros destaca-se do erro), estéticas também nas duas modernidades[20], em relação à li­berdade de composição poética e literária. Foi a fotografia que intro­duziu uma alteração notável desta questão no que tem a ver com o mundo das imagens (na pintura dita abstracta não há imagens, ela não é aqui contemplada): enquanto que a vrdade ou mentira da pintura havia já suscitado dúvidas éticas a Platão no Sofista (235e-236c), o carácter maquinal e químico da fotografia, a química da luz, produz um efeito de real (R. Barthes, La chambre claire), implica a convicção forte da sua verda­de, apesar das manipulações possíveis (tudo somado relativamente raras). “O que é visto no papel aconteceu realmente: é um atributo essencial da fotografia analógica”[21]. Enquanto que no cinema, a arti­ficialidade dos cenários, as escolhas de planos e os seus cortes, o jogo de elipses, a montagem e outros elementos da composição dos filmes  depressa mostraram que ele relevava da ficção, com possibilidades de truques, de erros e de mentiras, como a pintura desde sempre.

Artificções
21. Seria preciso ainda perguntarmo-nos – os músicos preten­dendo sem dúvida que a sua música se relaciona com o mundo, com a vida, seja qual for o modo de falar deles –, seria preciso pôr a questão de saber que verbo (descrever, dizer, narrar, contar, figurar, evocar, cantar... o mundo) poderia dizer a relação destes quatro ‘tipos’ de usos não como os outros, destas inscrições em matérias de empréstimo, aos outros usos e coisas. Sem nome comum, sem verbo comum tão pouco? Em resumo, a linguagem é um modo de dizer as coisas, a matemática de as contar e medir, a pintura e o cinema de as imaginar, a música enfim de as fazer cantar.
22. Renunciemos pois a encontrar um verbo comum, mas não um nome. Ele deve dizer a composição, como em qualquer uso, em  qualquer técnica, mas enquanto que nos outros usos, em geral, os useiros não são destacáveis deles, fazem parte intrínseca deles[22], su­blinhemos pela palavra ‘artifício’ a autonomia ganha por essas com­posições, no sentido em que elas são estruturalmente reproduzíveis fora do compositor e em que é essa a sua razão de ser. Não se trata pois somente de um ‘artefacto’, mas sobretudo de um ‘artifício’: o sufixo ‘-fício’, ao contrário de ‘-facto’ (os dois dizendo ‘fazer’), diz tam­bém o seu carácter ‘fingido’ (‘fingo’, em latim), fingir como ‘ficção’. Permite ainda dizer a autonomia da sua composição em relação à “matéria de empréstimo”, sonora ou superfície visual, em que elas são inscritas: ainda que o nome não seja muito bonito, poderia dizer-se que se trata do mundo das artificções. É esta autonomia de com­posição que lhes proporciona as possibilidades estéticas do que chamamos ‘arte’[23], ela manifesta-se na liberdade (relativa) da sua composição (ou ficção) segundo regras imotivadas em relação às leis mecânicas, químicas, eléctricas, fisiológicas, dessas matérias. Ao con­trário dos outros artefactos e usos sociais, em que as inscrições se fa­zem essencialmente de acordo com essas propriedades ‘materiais’, para delas se tirar partido: o que nós dizemos ‘utilidade’ ou funcio­nalidade.

(E a articulação do código genético?)
23. Façamos um parêntese para colocar a questão de saber qual é a estrutura do ADN dos biólogos, do programa genético que eles dizem ser uma escrita (-grama), composta de unidades discretas em linha (dupla hélice, ou duas hélices simétricas?), a que atribuem um ‘código’. Pode-se aproveitar este quadrado quase sinóptico para caracterizar essa escrita? Uma vez que o código consiste na tradução em sequências de aminoácidos – proteínas, também em articulação linear de unidades discretas –, será preciso olhar dos dois lados. Para começar, não há dupla articulação linear, mas uma única cujas unidades se relacionama umas às outras como um código (do ADN às proteínas, biunivocidade sem reciprocidade, digamos): “a função do código genético é a de realizar um aparelhamento específico entre o mundo dos ácidos nucleicos e o mundo das proteínas” (Barbieri, 2000, pp. 96-7)[24]; trata-se portanto de ‘palavras’, já que tendo uma significação, de que cada gene (segmento composto destas palavras) é uma ‘frase’, transcrita em ARNm (algumas destas palavras são sinais de pontuação, indicando o início e o final da frase). Se se pretender que os triplicados de nucleótidos (composto cada um dum mesmo fosfato, mais um mesmo açúcar, mais uma base azotada, esta sendo a única que é diferente segundo quatro possibilidades, A, T, C, G) são compostos de ‘letras’, uma tal composição não tem incidência na ‘frase’, permanece limitada adentro da ‘palavra’, ao contrário da dupla articulação, em que o jogo poético, rítmico, das entoações, por um lado, da morfologia (verbos, número e género de nomes e artigos, derivações) e as preposições e conjunções sintácticas, do outro lado, são assegurados por mecanismos fonológicos, relevam duma dupla articulação (uma dupla, não duas). É justamente por só haver uma articulação que o código genético – relações entre as palavras do ADN e do ARNm e as das proteínas – é universal, universalidae que parece conhecer raras excepções (mitocôndrias, alguns unicelulares). Entre tal segmento do ADN, o ARNm que o traduz e a proteína sintetizada, as diferenças são as mesmas, é isso que é um código. Se portanto o ADN forma um texto, de que o ARNm é uma frase que corresponde por sua vez ao texto de cada proteína, como caracterizar esta articulação única, comparando-a com a escrita matemática e com a música? Havendo ‘palavras’, está do lado da matemática. Mas como não há ‘palavras operatórias’ (excepto as pontuações), também não há sintaxe, apenas justaposição, portanto deste ponto de vista do lado da música (que não tem sintaxe, a justaposição não o é). Seria então uma matemática sem sintaxe, uma música com palavras, nem uma nem outra. Talvez se possa dizer que se trata duma inscrição sobre açúcar e fosfato (estes à maneira de ‘matéria de empréstimo’), que se traduzirá em inscrição do ARNm, e servirá de guião para a construção de proteínas, que são ‘funcionais’ na estrutura da célula. Apenas o ADN e o ARNm seriam ‘inscrições’, cujas diferenças genéticas caracterizam cada espécie biológica de forma ‘imotivada’ (como as diferentes línguas e as diferentes sociedades). Mas não sei se isto poderá ser alguma vez compreendido e levado a sério por algum biólogo.

II DO PONTO DE VISTA SEMIÓTICO

As artes poéticas segundo Aristóteles
24. São estes ‘usos que não são como os outros’ que fornecem os materiais de que se fazem as diversas artes da tradição ocidental. Talvez possamos entrever uma classificação delas a partir deste quadrado quase sinóptico, situando o panorama contemporâneo das artes e das instituições de circulação cultural, se nos deixarmos instruir pelo primeiro grande texto filosófico a ter ousado um tal ensaio. Deixemos cair os números, apesar da beleza de certas demonstrações matemáticas, abramos a Poética de Aristóteles. Damo-nos conta logo de entrada que o logos e a harmonia, isto é o discurso duplamente articulado e a música, estão entre os critérios do seu primeiro ensaio de classificação e definição das artes poéticas, assim como as eikonas, as imagens pintadas, são por vezes evocadas para ajudar ao raciocínio. Vêm todos os três logo no primeiro capítulo, depois da definição destas artes em geral pela mimêsis, isto é, pela reprodução, das coisas da vida digamos vagamente, em ‘outras’ do que elas (en heterois, que se traduz habitualmente por ‘meios’)[25]. Trata-se da linguagem, da música e do ritmo (este sendo típico da dança e valendo também para a métrica dos versos), por um lado, das cores e dos desenhos do outro (1.1447a18-22). Se se achar que o ritmo duplica a sonoridade musical, encontramos facilmente o nosso quadrado quase sinóptico, desfalcado da escrita matemática.
25. O que é esta mimêsis, qual é o seu ponto forte? É referido no início do cap. 9: é o passo que vai do “particular” do que acontece, dos acontecimentos contados pelos historiadores, ao “geral” (katholou) do possível, do que é susceptível de ser exemplar para o público dos espectadores ou leitores: este “geral” deve re-produzir as coisas da vida para ‘ensinar’ qualquer coisa a esse público (início do cap. 4), purificar-lhes as paixões e elevá-las (a célebre katharsis, tratada de 9.1452a1 ao final do cap. 14), educar essas paixões em suma, o que não conseguem as coisas que sucedem em particular. É por isso que mais vale traduzir mimesis por re(pro)dução, para dizer a retracção do autor enquanto ‘particular’, a qual permite que a obra, elevada ao geral, fale dela mesma, escondida a sua doação (pro) entre parênteses, reduzida. Como num laboratório, tal seria, para Aristóteles, o essencial da produção artística, a sua maneira de re-tomar as coisas da vida.
26. Os cap. 2 e 3 acrescentam dois outros critérios de classificação das artes poéticas, alem da linguagem e da música. É possível mostrar[26] que o critério do cap. 2 é mais da ordem da ‘ética teatral’, opondo a ‘baixa’ comédia à ‘nobre’ tragédia e visando a karharsis, e que substitui, em função da definição de tragédia no início do cap. 6, ‘a acção trágica’, o seu muthos ou narrativa, esta narratividade sendo então um critério decisivo a reter[27], omisso no cap. 2. Quanto ao cap. 3, restringido às artes de narratividade, distingue as artes que, como a epopeia, relevam só da narração, das que, como tragédia e comédia, se jogam na cena teatral por meio de actores.

Linguagem, música e narratividade, cena e moldura
27. Entendo aqui logos como o discurso em linguagem duplamente articulada, quer oral quer escrita, e a narratividade como uma sucessão de sequências com princípio, meio e fim (cap. 7), formando um “todo” (holon) temporal, com uma lógica razoavelmente assegurada (a célebre verosimilhança[28]). Com estes três critérios, já se podem preencher algumas casas duma tabela classificadora das estruturas das principais artes contemporâneas. Artes que só têm linguagem (poesia no sentido estrito e oratória), outras que só têm música (concerto), ou só narratividade (pantomina). Depois, artes com linguagem e narratividade (literatura narrativa, romance, teatro, banda desenhada), outras que aliam música e narratividade (dança), e os que juntam os três (ópera, cinema, animação). Mas nestas duas últimas casas há coisas bastante díspares e outras artes ficam de fora, que escapam a estes três critérios: pintura e desenho, fotografia, escultura, cerâmica, tapeçaria, mobiliário, arquitectura, monumentos. Os três critérios não são pois suficientes, temos que encarar os do cap. 3, entre cena teatral e texto narrativo. Ora, este é tipografado nas páginas rectangulares dos nossos livros e sucede que pinturas e fotografias são enquadrados em molduras rectangulares. Teremos então um outro critério que permite distinguir artes de cena e artes de moldura. Esta é característica da pintura, desenho, fotografia, banda desenhada, cinema e tapeçaria: a sua forma geral é o rectângulo. Mas as páginas dos livros, jornais e revistas também são rectangulares, o que especifica a banda desenhada como duplamente emoldurada: temos pois que distinguir moldura e paginação.
28. Quanto à cena, ela é inerente ao teatro, mas também à pantomina, à poesia declamada e à oratória, bem assim como a todas as artes da música: a canção, a ópera, o concerto e a dança, e ainda ao cinema. A arte típica do século XX é assim a única a definir-se ao mesmo tempo pela moldura e pela cena: é justo que tenha sido chamada 7ª arte, é verdadeiramente nova em relação à tradição. Mas de que arte mais englobante releva esta cena artística? Da arquitectura (das salas de espectáculo). E a arquitectura, por sua vez, tem alguma cena enquadrando-a? Sim, a paisagem, critério artístico decisivo em arquitectura, como se sabe, cada obra devendo jogar com as suas vizinhas. Também os monumentos, do tipo das estátuas, se enquadram na paisagem, a diferença em relação à arquitectura sendo que estes não podem envolver outras artes. Mas outras formas de arte, que não tinham casa onde se alojar, encontram-na aqui: a escultura, a cerâmica, a tapeçaria e o mobiliário alojam-se no interior da cena arquitectural, duma forma mais livre do que as salas de espectáculo mas igualmente condicionada, já que o seu destino como obras de arte depende do lugar de exposição, da sua posição respectiva a outras obras, da cena como decoração.
29.
Linguagem
Música
Narratividade
Cena
Moldura
Poesia oral Oratória
+

ø

         ø

       +

        ø

Poesia escrita
+
ø
         ø
       ø
         +    (2)
Concerto
ø
+
         ø
       +
         ø
Pantomima
ø
ø
         +
       +
         ø
Canção
+
+
         ø
       +
         ø
Romance
+
ø
         +    (1)
       ø
         +    (2)
Teatro
+
ø
         +
       +
ø
B. desenhada
+
ø
         +
       ø
         +    (2)
Dança
ø
+
         +
       +
         ø
Ópera
+
+
         +
       +
         ø
Cinema
+
+
         +
       +
         +
Pintura
Fotografia
ø
ø
ø
       ø
         +
Escultura
Cerâmica
Mobiliário

ø

ø

ø

       +      (3)

ø
Tapeçaria
ø
ø
ø
       +      (3)
         +
Arquitectura
Monumento
ø
ø
ø
       +      (4)
ø
(1) suportada pela linguagem (2) paginação (3) decoração (4) paisagem

Comentário
30. Reflexões simples dum não especialista. Um pouco mais de metade das artes (11 em 20), ocupando sozinhas uma casa, têm uma definição estrutural suficiente. Excepções: poesia oral e retórica distinguem-se por figuras de ritmo, um pouco como verso e prosa, por um lado, mas também pela função retórica de persuasão (religiosa, politica, pedagógica) da segunda. Pintura e fotografia (como cinema e desenho animado?) distinguem-se pelos processos de fabrico, seja a arte manual do desenho e da cor, seja a utilização de maquinaria química de luz ou de gravação electrónica. Escultura, tal como a poesia, distingue-se pela sua gratuidade artística da funcionalidade habitacional da cerâmica e do mobiliário. Poder-se-á pretender que as questões estéticas específicas destas diversas artes se ligariam às características estruturais das respectivas semióticas?
31. A narratividade não tem o mesmo modo de se expor nas epopeias, romances e outras narrativas literárias, é a linguagem duplamente articulada que a suporta, e nas artes de cena, o papel da linguagem podendo ser mais ou menos importante mas sempre dependendo das falas dos actores personagens (a lexis da Poética) que exibem a narrativa nos seus gestos e diálogos (também na banda desenhada, que por vezes inclui um texto narrativo). Esta diferença ajuda a compreender as questões de transposição entre estas artes: é que a narratividade presta-se a ser resumida num guião, podendo assim um romance ser origem dum filme, havendo então que considerar que esse guião comum é o resíduo não artístico dum ou como do outro. O que daria uma espécie de critério estético negativo: o artístico nessas artes é aquilo que se perde no resumo, a transposição consistindo na substituição, no guião comum, do específico duma arte pelo específico da outra, o que dá origem a quatro hipóteses de sucesso artístico (as duas belas, só uma delas, nenhuma), sem garantias a priori.
32. Também se poderia pretender que dois pares de artes, poesia oral e canção, teatro e ópera, se distinguem pelo acrescento de música à linguagem, tratando-se das duas artificções (§ 22) da sonoridade. Diferente é o caso da pantomina e da dança, já que a primeira insiste sobre a mimêsis, enquanto que na dança a música joga nos corpos, leva-os a um excesso além da sua marcha habitual, assim como a prosa quotidiana se interessa pelas coisas ditas e os versos seriam a sua excessiva ‘música’.
33. O motivo de ‘moldura’, tal como o de cena, tem a vantagem de ter em conta a clausura específica destas artes, o que delas se exclui e os seus efeitos sobre o que se inclui, forçá-lo, condicioná-lo, alterá-lo, dando à obra uma unidade semiótica específica que nega a relação intertextual com os outros ‘possíveis’ que esta obra não será. Trata-se dum critério mais energético do que estrutural, inspirado na leitura do parergon kantiano por Derrida[29]. Não é indiferente para um pintor a dimensão do rectângulo da sua obra: a sua arte não é feita apenas de traços, formas e cores, mas também da sua justaposição no rectângulo, de maneira a obter efeitos artísticos independentes de qualquer ‘referente’, ainda que se trate de pintura figurativa. É justamente para chegar a esta composição inédita que terá sempre que haver coisas a excluir, de-cisão (corte) intrínseca às abordagens e afastamentos das formas, traços e cores bem como às questões de escala e de perspectiva.
34. Também na fotografia o mesmo fotografado pode ser tratado de formas indefinidamente diferentes, segundo o que se exclui e portanto a disposição interna do que se inclui: as imagens resultantes são sempre singulares, é a singularidade que qualquer artista busca incessantemente. É esta característica que constitui o conceito cinematográfico de plano, desde o grande plano dum detalhe até à mais vasta panorâmica. A escrita do movimento (kinêsis, cinemato-grafia) não é senão este jogo de montagem das mudanças de plano, de que se vão escolhendo as diferenças de moldura. O teatro não tem este jogo, embora os jogos de luzes actuais na encenação busquem aproximar-se dele.
35. Quanto à paginação, é a base das artes gráficas, dos belos livros, das revistas e jornais, que jogam com as linhas dos textos e as fotografias ou desenhos, de forma a chegarem a uma disposição artística do rectângulo da página, como obviamente no que diz respeito à banda desenhada. Poder-se-ia por a questão do jogo da tipografia elaborada, uma edição luxuosa de A Divina comédia, por exemplo, em contraste com uma edição de bolso para estudantes: haverá alteração do texto? Sem dúvida que o significante linguístico é o mesmo (como o Sermão da Quarta feira de Cinzas do P. António Vieira lido por Luís Miguel Cintra ou por um fraco estudante). Mas já que nas estantes das livrarias e das bibliotecas não há senão ‘livros’, objectos arrumados, já que não há texto senão no longo tempo da sua leitura, já que esta produz efeitos de sentidos plurais bastante complexos, nomeadamente segundo a cultura do leitor, como dizer esses efeitos de leitura numa paginação artística? Ou ainda os efeitos das variações do jogo entre as linhas e os rectãngulos das páginas, das imagens?
36. Aristóteles faz da cena teatral um critério definidor da tragédia, mas em seguida, num movimento logocêntrico que privilegia a narratividade e a linguagem, a parte do poeta que escreveu a peça, ele chega a negar que ela releve da arte poética (apenas das despesas dos cenários); pode-se todavia mostrar que os diversos limites das outras partes da tragédia, nomeadamente a extensão ou duração do narrativo, são dados pela cena. Em sentido oposto, o teatro contemporâneo foi levado a insistir sobre a encenação que pode chegar ao ponto de tornar ‘outra’ a ‘mesma’ peça dum dado autor (o que Aristóteles teria detestado). As canções de Anne Sylvestre não deveriam ‘caber’ nas decorações feéricas dos shows hollywoodianos. A arte da declamação poética ou da oratória depende da distância ao público, nem a um metro de distância nem de maneira a que seja necessário gritar para se ser ouvido pela sala; em sentido contrário, um certo tom secreto, intimista, sedutor, jogando sobre a aparelhagem acústica, pode tornar-se asfixiante. O jogo com as entoações dos actores de teatro, para se fazerem ouvir, obriga-os a alterações mais ou menos difíceis quando eles actuam em filmes. E por aí fora, desculpe-se-me esta falta de jeito para tornar sensível como a cena, tal como a moldura, tem um papel enclausurante em relação à suas artes. Numa outra direcção, já Aristótles recomendava que o “irracional” (alogon) seja dado fora da cena (24.60a29), enquanto por outro lado, aconselha o poeta que compõe a “colocar ao máximo a cena debaixo dos olhos” (18.55a22-3). Hitchcock vociferava contra a facilidade de fazer-se os personagens contarem o que se passara em vez de o mostrar em cena, a filmagem da narratividade devendo sobrepor-se ao discurso. No extremo oposto, Duras, a escritora, guarda a banda sonora de Índia Song para lhe sobrepor uma outra banda de imagens e fazer Son nom de Venise dans Calcutta désert, como se o jogo dos sons pudesse fazer-nos ‘ver’ os dois filmes ao mesmo tempo.

Retorno à mimêsis
37. Só há mimêsis quando o artista não aparece, não deve aparecer, tem que permanecer retirado para que o público possa ter acesso à obra, a qual deve poder permanecer além da sua morte (o que é característica geral de todas as inscrições). Este retiro essencial é o da re(pro)dução, retiro do artista em relação ao próprio público, tendo em vista os efeitos que tentará pro-vocar nele. O ‘re-‘ – repetição, recuo, retiro – diz que qualquer arte, figurativa ou não, é mimética por partir do mundo social e se afastar dele, digamos, este movimento de saída sendo o primeiro tempo da produção artística, que pedirá um último tempo, o do retorno: ‘-dução’. Entre ambos, em retiro pois, escondido, enigmático, o que faz vir a obra como acontecimento: ‘pro’ de produção, em que, sem que se saiba como, o artista faz vir – ‘pro’ – o que simultaneamente deixa vir – ‘(pro)’ – o que lhe é assim dado. Esta simultaneidade do activo (trabalho) e do passivo (inspiração) é cultivada de maneira específica pela arte, de maneira diferente da do pensamento, filosófico ou literário por exemplo, ou do laboratório científico.
38. A mão do poeta escreve palavras e frases, joga ao mesmo tempo sobre a sonoridade e o ritmo (paradoxo duma arte escrita que se revela na declamação oral) das palavras significantes e sobre o pensamento da frase e seu encadeamento com as outras frases; mas o seu retiro re(pro)dutivo cria oscilações nas palavras, na sintaxe das frases, afasta-as da sua utilidade quotidiana, repetida por toda a gente, para as fazer tender para o acontecimento poético, excelência do dizer e do pensar. Tratar-se-á de ajudar o leitor a elevar, ele também, a sua voz, o seu discurso, a ir até aonde se pode, além do que se pode, a elevar a sua ‘cultura’ e a sua vida no retorno ao quotidiano[30]. Para isso, o poeta teve que se retirar do papel escrito, deixar o leitor à ‘sua’ leitura, deixar a obra obrar enigmaticamente. Só o escrito retorna, não o poeta, que não tem que explicar o que escreveu (nem o saberia fazer), nem ser entrevistado, nem que conhecer o leitor, distância esta que é para bem de ambos, que os seus mundos são outros.
39. O retiro na cena visual e sonora passa essencialmente por actores e intérpretes, quer os do teatro e do cinema, é claro, mas também os músicos e os cantores, todos os que têm que ensaiar antes de ir à cena. Esta repetição dos ensaios é estruturalmente uma dissimulação, uma retracção em que há que aprender a tornar-se outro, um ‘personagem’ que age na cena por conta de outrem, ainda quando ele próprio é o compositor, o inesquecível José Afonso. Na cena não há distância temporal entre a produção da obra e a sua leitura pública, a sua re(pro)dução (excepto no cinema, que é também uma arte de moldura), é a figura do actor, do intérprete, como dissimulador (reproduz o que não vem dele mas doutrem) que torna possível o retiro do artista em o qual não há arte, a improvisação não sendo porventura senão a excepção que confirma a regra. Tal como na poesia, o que se busca é também elevar as pessoas além da repetitividade da sua vida quotidiana, reproduzir esta de forma intensa e singular, a fazer dela acontecimento. Assim aprendemos por exemplo a amar, lendo romances, vendo teatro e cinema.
40. As imagens rectangulares implicam também o retiro dos seus autores, de duas formas bem diferentes. A mais recente é uma máquina de ver, que olha e guarda o que olhou para que possa depois ser reproduzida em papel ou noutra superfície rectangular, écran de cinema ou de televisão. Ela tem a sua ‘câmara escura’, portanto retirada da luz, que se abre o tempo dum clique e fecha de novo desde que a diferenças de luz se tenham inscritas na película química ou electrónica. Isto é feito automaticamente: o único jogo que é possível é o da rectangularização, do plano (perspectiva, proximidade, encenação) e o da duração da abertura, e em seguida os processos de laboratório, de montagem. Trata-se portanto, ao invés da pintura, duma técnica, de que a instantaneidade tem o risco do inartístico, da reprodução sem a retracção da arte. Já que o tempo é essencial à arte dos pincéis e das cores químicas, essa arte bem antiga que foi sempre pensada como mimêsis, como a arte do olhar que ensina a olhar melhor. O choque provocado pela fotografia, pondo em questão um certo realismo, permitiu sublinhar a retracção do olhar do pintor, como se este esquecesse as coisas, as gentes, as figuras e só guardasse os riscos e as cores, livres enfim no seu jogo de pintar. Mas como se trata sempre de ‘-dução’, de retorno ao olhar do público, esta pintura que chega ao abstracto faz como que um desvio do olhar, uma oscilação das induções entre o ‘figurativo visto’ e o ‘não figurativo pintado’, apagando o ‘re-‘ para guardar apenas o olhar, num mundo de proliferação indefinida de imagens: a arte de elevar os nossos olhares tornou-se mais exigente. O que também veio a incentivar o fotógrafo a aprender por sua vez com o pintor a retracção do seu olhar artístico, a construir o seu plano, a desconfiar do instantâneo e da funcionalidade da técnica, do documento, a dar-se o tempo da arte de olhar.

III DO PONTO DE VISTA DA CIRCULAÇÃO

Técnicas de circulação cultural
41. Estas “inscrições numa matéria de empréstimo” – esta podendo ser quer sonora, quer visível ou táctil, como vimos –, que oscilam entre o funcional e o gratuito artístico, têm uma longa história (desde a invenção do desenho, do canto, da escrita e do cálculo) que, com o desenvolvimento das sociedades agrícolas de casas e das cidades, possibilitou o alfabeto na Antiguidade mediterrânica e no alvor da Europa a imprensa, antes (e condição) da máquina e das sociedades modernas de instituições e família. Os livros (seguidos dos jornais e das revistas), reproduzindo as obras e o saber dos antepassados e as inovações dos contemporâneos, foram as primeiras técnicas de circulação cultural modernas absolutamente vitais, trazendo a possibilidade do desenvolvimento quer da escola, quer da opinião pública. Os dois últimos séculos multiplicaram as técnicas de circulação respeitando ao conjunto do nosso quadro sinóptico, a electricidade e o electromagnetismo permitindo juntar às inscrições visíveis a transmissão a distância das sonoridades dos discursos e das músicas bem como o movimento das imagens. De forma tal que foi possível encontrar nessa transformação em corrente eléctrica e em ondas electromagnéticas um critério para dizer o conjunto sem nome das artes e das outras inscrições de que aqui nos ocupamos: pertence a esse conjunto tudo e apenas o que pode ser assim transmitido[31]. Ocupar-nos-emos aqui das técnicas, não das instituições.
42. Não nos espantaremos de encontrar aqui as mesmas rubricas classificativas das artes, já que se trata das mesmas inscrições, a escrita matemática não acrescentando nenhuma diferença significativa. Mas haverá um novo critério a acrescentar, propriamente técnico, que tem a ver com a maneira das respectivas instituições chegarem ao público. Ou tira-se um número maior ou menor de cópias (a mesma inscrição em matérias individualmente diferentes) e se as distribui em seguida pela geografia do território habitado pelo público destinatário, como era já o caso dos livros e continua a ser o da imprensa escrita, jornais e revistas, mas é também o dos discos, filmes e vídeos; há uma distância temporal irredutível entre a produção antes de mais, a tiragem das cópias em seguida e a distribuição geográfica num terceiro tempo, a concorrência centrando-se (para o mesmo tipo e qualidade de produtos, ou seja para o mesmo público) na redução desses hiatos, tendo em conta nomeadamente a efemeridade dos produtos. Ou a difusão directa por ondas magnéticas, que a partir de fontes de emissão chegam a antenas de recepção alojadas nas cenas familiares. Trata-se da multiplicação da mesma cena pelas arquitecturas residenciais, fazendo economia das cenas especializadas do teatro e das salas de cinema e da sua concentração de público. O ‘directo’ da difusão a velocidades muito grandes elimina quer as cópias quer os tempos da sua distribuição, assegurando ao mesmo tempo a possibilidade de atingir números muito grandes de auditores e espectadores, números comparáveis com os das populações dos territórios em questão. Com a consequência de o elitismo das artes e a elevação do público serem postas em questão: o que está agora em jogo são as ditas ‘massas’, estas instituições que são chamadas em americano “mass media”.

Tabela dos Médias
 43.
Emissão
  cópias
 linguag.
narrativ.
música
  cena
moldura
livros jornais revistas

ø

+

      + (1)

      + (2)

ø

    ø

     + (3)
discos
ø
+
      + (4)
      + (2)
+
    + (5)
      ø
rádio
+
ø
      + (4)
      + (2)
+
    + (5)
      ø
cinema
ø
+
      +
      +
+
    +
      +
TV
+
ø
      +
      +
+
    + (5)
      +
vídeo
ø
+
      +
      +
+
    + (5)
      +
(1) escrito (2) transportado pela linguagem (3) paginação (4) oral  (5) cena residencial
44. Antes da internet, o problema dos computadores não se punha enquanto médias[32], como continua a não se pôr o dos telefones ou o dos correios: eram apenas máquinas de escrever e calcular incomparavelmente mais eficientes do que as que antes havia. A internet, a grande Teia, pelo contrário, não será um ‘média’, já que desafia os critérios da tabela proposta. Se há instituições específicas, os servidores, não são mais do que computadores muito grandes a que se ligam os privados que querem entrar no jogo; de facto, tanto os emissores como os receptores são computadores geograficamente localizados que ‘entre si’ (inter) fazem ‘rede’ (net) através do nó dum servidor, que por sua vez faz rede com outros servidores. Esta rede de numerosos servidores não se presta a que haja ‘emissão’, já que ninguém tem acesso indiscriminado a todos os computadores, dum país por exemplo, ou duma região. Os servidores são susceptíveis dum certo controle politico mas cuja autoridade, tanto quanto sei, é a da ameaça de cancelamento de tal ou tal servidor[33], não a de intervenção directa na emissão, como se pode fazer por comunicados nas rádios, nas televisões e em jornais (médias que podem ser ‘ocupados’ militarmente, como nos golpes de Estado): não só não se ‘emitem’ comunicados oficiais na Teia, como cada um pode rejeitar receber o que venha de tal ou tal computador. Todos os ‘emissores’ na Teia são singulares, indivíduos ou instituições, com a diferença importante de os servidores terem um raio de acção maior do que os particulares e de estes terem de passar por aqueles para chegarem a terceiros. Haverá, pelo menos, duas potencialidades inéditas a sublinhar: as de ordem democrática, devidas ao acesso de todos os interessados a uma rede com possibilidades de repercussão indefinida, potencialidades essas que, juntamente com as redes de telemóveis, já foram demonstradas desde as eleições espanholas de 2004 até às revoltas árabes da primavera de 2011; potencialidades também de ordem cultural, a saber o acesso às grandes obras da história humana, literatura, pensamento e outras artes, a Teia sendo uma biblioteca e discoteca e museu universal. Se se atender a que no conceito de média que se propôs há uma direccionalidade, de emissor a receptor (em que a este resta a liberdade de não ler e não ouvir), propício a dominações ideológicas variadas, pode-se pensar que afinal o termo ‘média’ só na Teia é que pode jogar com o sentido que ele tem (como em ‘intermédio’). Acrescente-se que, como qualquer instituição pedagógica, como por exemplo as bibliotecas, ela não pode ser eficiente sem a ajuda de testemunhas culturais mais sabedoras, à maneira dos professores nas escolas.

Relação entre médias e artes
45. Na tabela dos médias, eles repartem-se em três grandes tipos: os gráficos ou de paginação (1ª linha), os auditivos ou sonoros (2ª e 3ª linhas) e os que jogam sobre as três possibilidades (4ª, 5ª e 6ª linhas). A cópia é uma operação técnica que reproduz integralmente um texto, um filme, uma música em outras matérias de empréstimo, e não diz respeito à arte: copiar uma pintura ou um desenho é uma falsificação. Mas os médias podem fazer circular obras artísticas diversas, podem citá-las: chamo citação aqui ao enxerto entre médias e artes, à maneira como aqueles fazem circular estas, quer integralmente (rádio que difunde um concerto, televisão que passa um filme, livro que reproduz um quadro), quer parcialmente, efectuando então uma operação de montagem. Trata-se duma operação técnica, sem dúvida, mas que deve responder ao carácter artístico da obra, respeitá-lo ou mesmo realçá-lo: o cinema, em que a montagem é essencial à arte do filme, aprendeu muito cedo a utilizá-la em correlação com o jogo dos planos, depois também com a banda sonora. A regra geral da citação é dada pelo confronto entre as duas tabelas, a das artes e a dos médias. Serão integralmente citáveis por cada tipo de média todas as artes cujas características coincidem com as desse média. Os livros, jornais e revistas podem citar integralmente as artes de moldura, excluindo pois a música e a cena, e portanto também o cinema, apesar do rectângulo deste. Inversamente, discos e rádio, ao incluírem a linguagem oral e a música, excluem a moldura e as cenas de narratividade. Cinema, televisão e vídeo, que citam correntemente filmes, mas com perca da magia da sala escura, podem teoricamente citar integralmente todas as artes, mas com as restrições que se impõem de facto com a noção de plano, que torna as artes de paginação, um romance, por exemplo, difíceis de serem citadas integralmente, enquanto texto escrito, de forma económica num filme ou na televisão. Quanto às artes de cena, a citação cinematográfica ou televisiva faz-se seguindo percursos diversos, ou até com montagem por diversas câmaras, a multiplicação dos planos tendo como reverso a sua parcialidade.
46. O malentendido entre artes e médias resulta de que a funcionalidade destes e os seus custos, devendo cobrir toda uma geografia mais ou menos extensa, opõem-se à gratuidade da apreciação da arte: não que não haja que pagar um livro (mas pode-se emprestar) ou um filme, mas pelo facto de que a sua recepção deve constituir sempre um acontecimento, ter algo que releve do que em linguagem cristã se chama um ‘estado de graça’. Ora, o best-seller não é senão raramente um best-art. As técnicas de circulação cultural só podem jogar adentro de instituições, com o que isso implica de funcionamento regular e de periodicidade, de repetições, de custos de máquinas e de energia, de salários dos artistas (escritores, músicos, actores, realizadores, encenadores) que são supostos serem sempre capazes de produzir ‘acontecimentos’, de busca de lucros enfim. E sobretudo talvez, este carácter institucional implica que jornais, editores de livros, rádio e televisão, tenham que produzir sempre, os últimos por vezes 24 horas em 24. Como conseguirem manter sempre a qualidade? Por outro lado, o desenvolvimento das sociedades modernas fez crescer grandemente os salários médios e a monotonia dos empregos e das respectivas idas e vindas, crescer portanto também as demandas de divertimentos, de feriados e de férias, demanda de tempo livre e de não saber o que fazer dele. Aonde a utopia de André Gorz propunha uma esfera de autonomia, imaginação e solidariedade frugal para esses novos tempos livres[34], assistiu-se ao desenvolvimento de uma ‘indústria cultural e de divertimento’ especializada na caça das ditas ‘massas’, isto é, de gente de riso e palmas por tudo e por nada, fazendo-se uma concorrência mortífera feita de sensacionalismos na busca de audiências e de publicidades, tudo isto servindo de circo democrático quando o pão é pouco, e também engordando os números dos PIB dos economistas e políticos: assim se fecham os dois extremos da cadeia, o do riso e o dos números sérios.


IV DO PONTO DE VISTA DO DISPOSITIVO : NEURÓNIOS, PAPEL, CIRCUITOS ELECTRÓNICOS

Dispositivos de inscrição: neurónios, papel, circui­tos electrónicos

47.  A evocação destes diver­sos tipos de “usos não como os outros”, de “inscrições numa matéria de empréstimo”, permite considerar os dispositivos que podem fazer essas inscrições. Tal como o grego dizia com a mesma palavra techné, o que nós chamamos artes e técnicas (os ar­tesanatos), designando tanto as artes manuais como as artes do dis­curso, do mesmo modo um jogo é possível com a palavra hulê, ma­deira, a ‘matéria’[35] utilizada na construção com a pedra. Ora, tanto a madeira como a pedra e a argila foram das primeiras matérias de empréstimo das escritas antigas, essa madeira de que é feito ainda o papel das nossas inscrições, mas que deu lugar ao aço e ao betão ar­mado na construção. Se a imprensa, a indústria da escrita alfabética de ‘dupla articulação’, esteve no começo da modernidade europeia, o vapor proveniente do carvão, o petróleo e sobretudo a electricidade – as máquinas, de ‘dupla articulação’ também – asseguraram o seu desenvolvimento; livros e máquinas e libras, foi isso a nossa modernidade.
48. Digamos telegraficamente como a electricidade desempenha três papéis. a) A grande utilidade da electricidade clássica, dita de ‘correntes fortes’, é o seu modo limpo (do ponto de vista da poluição) e eco­nómico (do ponto de vista dos custos) de transportar a energia para longe (‘tele-‘); chegada às fábricas ou aos nossos apartamentos, ela é transformada noutras formas de energia, quer em iluminação, quer (por meio de um motor nas máquinas) em mecânica, térmica, etc., são estas outras energias que trabalham. b) Esta energia ‘tele-‘ pode também alimentar os aparelhos electrónicos, de ‘correntes fracas’, em que ela é transformada em artificções (linguagem oral, músicas, escri­tas diversas, inclusive imagens), transportada por antenas (ondas electromagnéticas) ou cabos de tipo telefónico. c) Enfim, a energia eléctrica cessa de ser ‘tele-’ para trabalhar por ela própria, conduzida por programas de software em circuitos electrónicos de hardware, quer em máquinas de construção, quer em aparelhos de inscrições: o robot e o computador. Depois da fotografia, do cinema, das ondas do audiovisual e da gravação electromagnética, é a última grande revolução moderna nas matérias de empréstimo das ins­crições.
49. Ora, acontece que os engenheiros dos robots e compu­tadores procuram os seus modelos no cérebro humano. Isto deve ser sugestivo para os filósofos, encontrarem problemas filosóficos no co­ração de questões técnicas, e começa por chamar a nossa atenção para o facto de o cérebro, dispositivo de inscripção por excelência, só o ser depois de ser ele próprio ‘matéria de empréstimo’ das inscrições de outros cérebros. Ele faz parte de um sis­tema mais complexo, entre os órgãos perceptivos e os músculos, onde podemos encontrar três grandes eixos : da visão ao trabalho das mãos e à caminhada dos pés, da visão ao trabalho só com as mãos e da audição à fonação, podendo­ nós fazer corresponder os robots ao primeiro, os computadores ao segundo e o telefone ao terceiro. Mas dos robots não nos ocuparemos aqui; tomaremos em consideração a) os cérebros humanos, b) o papel dos livros, c) o computador, actualmente jogando entre visão e mãos, d) e num futuro previsível entre audição e fonação também. Esta ordem, a da cronologia da sua invenção coloca-nos uma primei­ra diferença entre o cérebro e os outros dispositivos de inscrição: ele foi inventado pela muita lenta evolução dos vertebrados, dos peixes aos símios, antes das ins­crições (e das construções). O que implica uma delimitação essencial do dispositivo cerebral enquanto comparável ao livro e ao compu­tador: as tarefas essenciais de qualquer cérebro animal não têm nada a ver nem com os livros nem com os computadores, não ser­vem para nada na comparação que tentamos aqui. Em rigor aliás não há sequer cérebros, só há sistemas biológicos e fisiológicos mais ou menos com­plexos, implicando os órgãos ditos perceptivos e o sistema muscular ligado ao esqueleto e à mobilidade; mas implicando de igual modo o ‘resto’ do organismo, nomeadamente a circulação do sangue que o cérebro controla por via hormonal, assegurando-lhe o equilíbrio ho­meostático (teores variados, pressão, temperatura, etc.) (J.-D. Vincent). O sistema P-C-M (órgãos perceptivos-cérebro-músculos) tem a sua razão de ser na re­gulação necessária do organismo animal, face ao aleatório do tráfego no seu território ecológico[36], tendo em conta a predação e a fuga face à dos outros, a necessidade de assegurar as suas condições de repro­dução e repouso, etc. Tudo isto pertence à essência do cérebro ani­mal, que foi inventado pela evolução para ser-no-mundo-ecológico, quer por meio dos eixos olfacto / patas, mandíbulas-gosto / patas, quer pelos eixos visão / patas, audição / emissão de ruídos, etc. Enquanto que o computador foi inventado, a exemplo do livro, para ser-nas-es­critas, primeiro matemáticas e alfabéticas depois também, que exis­tiam já e pediam matérias de empréstimo cada vez mais aperfeiçoa­das. Foram os primatas antropoides que, tendo no entanto um cére­bro muitíssimo próximo do dos outros primatas símios, inventaram as línguas e as escritas (e as construções).
50. Quer isto dizer que os cérebros não são comparáveis aos livros e aos computadores senão a partir da invenção da linguagem dupla­mente articulada (oral e alfabética) e da matemática. Ora, do ponto de vista neurológico, essas linguagens são suplementares, elas inscre­vem-se em certas regiões da rede sináptica dos cérebros humanos, di­tas áreas de Broca e de Wernicke, as quais tinham já funções de inte­ligência pragmática, de compreensão estratégica na luta pela sobrevivência : foi em vista dessas funções que os cérebros foram inventados pela evolução da vida terrestre. Dito de outro modo, se se dá a ‘pensamento’ o sen­tido corrente na nossa civilização, aquele que pode valer também para os livros e para os computadores, não se pode dizer que ele seja uma função essencial dos cérebros animais em geral, nem ainda que, no que respeita aos humanos, se trata de uma função hierarquica­mente superior em relação às outras funções cerebrais. Dizer que o pensamento humano é histórico, implica pois que ele tenha sido também ‘inventado’, que ele tenha qualquer coisa de ‘artificial’, que não se possam opor os três dispositivos em termos de ‘natural / arti­ficial’. Trata-se de algo de positivo para a nossa comparação, que de­veria poder ajustar melhor as pretensões dos engenheiros da Inteli­gência Artificial às dos psicólogos e dos filósofos que se lhes opõem. É aliás também positivo para o debate que se delimite o que é verdadei­ramente comparável entre tudo o que um cérebro pode realizar[37]. Porque enfim, é positivo que um computador ou um robot não co­mecem a sonhar, a terem depressões ou orgasmos. Digamos que tentaremos aqui privilegiar as escritas e as suas operações sintáctico-semânticas, a sua aprendizagem e a sua memória.
51. Por outro lado, e é o que justifica os interesses filosóficos dos seus engenheiros, o computador está do lado do cérebro em opo­sição ao livro, pelo facto de trabalhar, enquanto que o papel se ofere­ce à impressão e não ‘mexe’: fica para ser lido. O computador vai mais longe do que o cinema, onde as imagens estão em movimento por meio de uma máquina mas não se alteram desde que o filme esteja terminado, enquanto que ele faz verdadeiras operações, umas que já se faziam antes da sua invenção mas que ele realiza muito mais de­pressa, outras, tal como as simulações, que os humanos não estão em condições de fazerem por eles mesmos.
52. Tratar-se-á de analisar as diferentes maneiras de os dispositivos se relacionarem com as respectivas inscri­ções, diferentes também segundo o tipo de linguagem ou escrita utilizada.

A inscrição no papel
53. Comecemos pelo livro. A sua matéria de empréstimo, o pa­pel, é uma superfície susceptível de inscrição do tipo tinta, assegu­rando quer o contraste das cores (negro sobre branco), quer a duração do material. Ela tem assim uma muito grande dispo­nibilidade face à inscrição, no sentido dos limites impostos: qualquer tipo de alfabeto ou de outra escrita – ideográfica, matemática, dese­nho, fotografia, notação musical, etc. – pode ser inscrita num livro. Uma tal disponibilidade não existe do mesmo modo nos dois outros dispositivos (que exigem, um a lenta aprendizagem, o outro um software adequado), mas tem uma contrapartida, uma vez a superfí­cie escrita não se pode mais inscrever nenhuma outra, ou seja, não há pa­limpsestos: nestes, ou se lê um, ou o outro texto, não os dois.
54. Um livro numa estante nada mais faz do que ficar entre duas leituras, é uma coisa, não é um dispositivo de linguagem. Para o ser, exige um sistema P-C-M humano que o leia. O que é ler?  Não é ‘ver’: eu posso ver com detalhe um livro escrito em russo sem poder entender uma só palavra. Mas ler também não é seguir uma palavra após a outra: é uma operação de apreensão, de compreensão das diferenças (entre letras, sintáctico-semânticas, códigos textuais, efeitos de ritmo) entre as palavras e entre as frases, das regras (a lín­gua) que organizam o texto, inclindo palavras que não estão escritas. Quando leio a palavra ‘bem’ num texto, devo saber que é um termo mais ou menos oposto a ‘mal’, mesmo se esta palavra não figura lá. Ora, as diferenças ‘lidas’, que implicam pois também ausências, não se ‘vêem’. Além disso, ler implica, por um lado, a memória do que já se leu em páginas anteriores (sem o quê não se entende nada), mas esta memória permanece de algum modo em retiro, nem ‘presente’ nem ‘ausente’, esquecida e memorizada: não retenho de cor tudo o que já li, esqueço o detalhe, mas se volto duas páginas atrás, sei que as li, reconheço-as. E por outro lado, antecipo o que ainda não li, como que em ‘suspense’, na expectativa, no desejo de saber que me faz continuar a ler. E o que lerei ligar-se-á ao que já li: retenho os jo­gos das diferenças já lidas, adio ou difiro as ainda não lidas. E depois da leitura terminada, uma certa memória permanece inscrita no meu cérebro (possibilidade de conversar sobre ele, de lhe fazer um resumo, escrever uma recensão, etc.), memória essa que poderá durar mais ou menos tempo durante a minha vida posterior, permanecer esquecida durante muito tempo e voltar-me um dia por associação com um outro livro do mesmo autor, por exemplo. Relidos ou não, há livros que jamais se esquecem completamente, mas posso também relê-los alguns anos mais tarde, com uma outra compreensão, ou então compreendê-los mal, etc. Em suma, não há livro sem leitura, sem cé­rebro de leitor. Pode-se dizer que o leitor é ‘inscrito’ pelo texto que lê, tal como pelas falas dos outros (o que aliás também vale para o cinema e outras obras de arte).
55. Os livros permitem também escrever outros livros. Não posso escrever isto que estou a escrever, com maior ou menor compe­tência, senão pela razão de já ter lido muitos livros na minha vida. Os cérebros dos autores dos livros que li, alguns já mortos há muito tempo, são pois condição essencial das minhas leituras-escritas, os Mortos que me habitam, inscritos duradouramente na minha memó­ria.

A inscrição na rede neurológica
56. Já comecei portanto a falar do dispositivo cerebral. Ora, o cérebro não funciona sozinho, ele está sempre engatado, enxertado numa situação dada num território ecológico. Por exemplo, o espaço e o calendário dos usos da casa em que habito, os seus humanos e os seus objectos, inscrevem-se no meu cérebro, traçam na sua rede si­náptica o que Changeux designa por grafos. Também os discursos orais produzidos nessa habitação, tanto os dos outros como os meus, se esquecem, são as suas repetições que se inscrevem duradouramen­te no tempo como grafos, como memória. Por exemplo, a da minha língua materna, com as suas regras linguísticas, tanto as mais gerais como as mais subtis, tais que elas são essenciais para que eu com­preenda o que me dizem e o que eu próprio digo. Essas regras, pude aprendê-las no liceu: mas já lá estavam, inscritas (como jogos de di­ferenças) no uso dos discursos concretos que eu ouvira  / lera / dissera / escrevera desde a minha infância, os quais discursos concretos es­queci completamente. Ora, a questão mais difícil, e que é decisiva no debate sobre os computadores, é que são os grafos que são percorridos pelos fluxos nervosos dos (novos) discursos que ouço (ou leio), sem esses grafos não compreenderia nada, por um lado; mas, por outro lado, esses grafos são memória esquecida, em retiro (não presentes mas também não ausentes, já que tendo efeitos de compreensão) relativamente ao fluxo empírico que os percorre. Retomemos o livro: inscrito no papel, o texto, embora não ‘mexa’, não é ‘passivo’ à leitura, como se crê muitas vezes, trata-se outra vez da diferença entre ‘ver’ e ‘ler’: circulando como fluxo ner­voso, as suas regras e palavras trabalham no cérebro, são reconheci­das pelos grafos, os quais portanto também trabalham. Quer di­zer que aquilo que, como fluxo ‘actual’ do texto no dispositivo cere­bral, é susceptível de ser reconhecido num electro-encéfalograma como rasto de frequências eléctricas inscritas (grama, em grego), não é senão uma parte, diga­mos, do que (se) está a passar no cérebro; a memória inscrita antes como grafo, relevando provavelmente da química (se não, como teria ela estabilidade?), deixará os seus rastos no e.e.g.?
57. Sendo um conceito teórico necessário, precioso (é o efeito retrospectivo da repetição dos percursos dos fluxos que permite reco­nhecer estes), o grafo talvez não seja acessível à observação neuroló­gica senão em simultâneo com o fluxo actual que o percorre. Fazendo embora parte essencial da matéria de empréstimo cerebral, no cora­ção do enigma humano, ele resistiria à oposição entre ele próprio e a inscrição actual. Já que a rede sináptica não serve para nada sem que grafos aí se inscrevam, e estes resultam da repetição dos fluxos, é como se os grafos se tornassem a matéria de empréstimo (entre as redes sinápticas, eles são aquelas que são facilmente percor­ridas), sem serem por outro lado isoláveis do fluxo actual. É sem dú­vida por isso que os neurologistas confessam tanta dificuldade em ‘apanhar’ a memória. E é talvez também a razão pela qual o cérebro é, à nascença, susceptível de ser inscrito por qualquer língua do mundo, mas esta disponibilidade reduz-se à medida que uma entre elas (e depois duas ou três estrangeiras) se inscreve duradouramente (ainda que os grafos possam apagar-se por falta de uso). Ora, o neu­rologista, com as suas máquinas enxertadas num cérebro a pensar, por exemplo, também não pode, através do seu aparelho, saber o que é que ele está a pensar, nem sequer em que língua ele pensa (M. Jou­vet, estudando gente a dormir, tem de cada vez que os acordar para saber se eles sonham ou não, e o que eles sonham). E aí estamos no coração de um outro aspecto do debate actual que opõe neurologis­tas e psicólogos (ou linguistas, analistas do discurso, psicanalistas, etc.) : os primeiros não têm acesso específico ao material dos segun­dos.
58. Tudo isto permanece igualmente válido para um cérebro que esteja a ler ou a escrever um texto em escrita alfabética, ou então a resolver exercícios de matemática. Nesse casos, a situação do terri­tório ecológico em que o cérebro está engatado, enxertado, está for­temente concentrada no papel e nos traços, na mão que a vista se­gue. Tal como não há linguagem oral sem território humano habita­do, sem a inscrição dos seus usos sociais, não há tão pouco escrita no sentido corrente sem linguagem oral, nem papel escrito, livros, ca­dernos escolares, etc. Também a matemática, vimo-lo mais acima, só existe no cérebro porque existe escrita também no papel: um cérebro não faz matemática senão com papel e lápis (ou seus equivalentes), esses dispositivos são-lhe essenciais, ela é irredutivelmente escrita, não há matemática puramente cerebral.

A inscrição nos circuitos electrónicos
59. Chegamos ao computador. Deixando de lado a ficção cien­tífica, os computadores têm necessidade, como os livros, de cérebros humanos para funcionar. Mas é o seu funcionamento como disposi­tivo electrónico que trabalha em autonomia que nos interessa aqui. O que é um computador? Digamos primeiro que é um hardware de cabos de electrónica, em circuitos labirínticos construídos tendo em vista certas operações, estas fazendo-se segundo um percurso entre uma entrada de dados, um teclado, por exemplo (ou um leitor de cartões perfurados, bandas magnéticas), e uma saída de resultados, uma impressora, de que o écran oferece uma pré-visualização (ou ainda bandas magnéticas, cartões perfurados, etc.) Entre os dois[38], programas de software variados de que se escolhe um, oferecem sin­taxes de operações sucessivas a fazer sobre os dados, regulam os per­cursos no labirinto, os quais exigem muitas vezes a intervenção do operador.
60. Trabalhando à electricidade (§ 24 c), esta só conhece duas possibilidades elementares: passar ou não passar, portanto 1 e 0. O que tem logo uma consequência bem conhecida: o hardware ignora até a distinção entre um número e uma letra. Ele apenas recebe do teclado 256 possibilidades, correspondendo aos octetos (bytes), com­binações de oito impulsos eléctricos simultâneos de 0/1[39]. É com es­ses octetos (0 1 2 . ,  a b c A B C + – etc., o intervalo entre as palavras inclusive) que o software tem que fazer jogar as sintaxes operacionais, a transposição fazendo-se por três operações elementares do sistema lógico (‘e’, ‘ou’, ‘não’), inscritas no hardware. Os números da aritmé­tica estão aí inscritos, não no sistema decimal que todos conhecemos (1, 2, 3, 4, 10, 100, etc), mas num sistema binário que só conhece 1 e 0[40]. Por outro lado, é necessário que todas as operações matemáticas que o hardware tem que operar estejam, ou inscritas na própria rede electrónica, ou traduzidas anteriormente nas que estão lá ins­critas. Se ele tem que adicionar dois números, o + do software deve estar convertido na indicação desta operação no hardware[41]. A mi­nha presunção é a de que o computador, no que respeita à matemá­tica, não faz senão isso, e que é essa a sua positividade, a razão do seu enorme sucesso. Posto isto, os números são susceptíveis de verda­deiras operações de cálculo, a uma velocidade inaudita; mas não as letras das equações, que são apenas transpostas entre os seus dois membros, segundo as regras matemáticas, até ao momento em que sejam substituídas por números, o cálculo prosseguindo em seguida somente com estes. É justamente o que o matemático também faz na sua matemática de lápis e papel. Ainda aqui, não se trata de um de­feito dos computadores, mas  da sua positividade essencial.          
61. Quer isto dizer que o hardware é radicalmente inapto para ‘calcular’ com a linguagem alfabética: as sua únicas operações – muito úteis, cada um de nós o sabe pelo seu Mac ou P. C. – são as de receber ‘representações’ de letras, acentos, vírgulas, etc. e espaços brancos se­parando as palavras, o que lhe permite ter também ‘representações de palavras’ (e de sintagmas mais ou menos prolon­gados) como sequências de representações de letras[42]. O que quer di­zer que, por razões intrínsecas ao hardware, o computador ignora a dupla articulação da linguagem (§ 9) e os seus diferentes níveis de regras, as quais no entanto se jogam ao nível do software, enquanto texto capaz de ser lido e escrito por um cérebro humano. Encontra­mos aqui um contraste fundamental em relação ao dispositivo neu­ronal: o próprio software do computador não ‘lê’ as diferenças (§ 30), ele apenas ‘vê’ letras, números, sinais das operações. Quando por ve­zes se distingue a letra O do algarismo O, cortando este com uma diagonal (Æ), é para evitar o risco de desatenção do operador perante uma mistura de letras e números, enquanto que esse risco não existe normalmente para o cérebro, que lê a elipse O como letra se rodeada de letras, em Ovo (jogo de diferenças) ou como número se rodeado de núme­ros, em O, 31 (idem). Aquilo a que chamei ‘representação de palavra’ implica a inexis­tência de diferença entre ‘significante’ e ‘signifié’ (no sentido de Saus­sure) – ora, esta diferença não existe na escrita matemática, sem o quê ela não seria exacta. Se o hardware do computador, que só co­nhece O / 1, é cego perante a diferença letra / número, muito mais cego será em relação à polissemia (§§ 4-6)[43]. A polissemia não é uma fluidez da linguagem mas algo que resulta de regras linguístico-tex­tuais muito subtis e precisas. Não é pois senão ao nível exclusivo do software que estas regras, ou operações, devem ser fornecidas, explici­tamente, ao computador, como quem lhe ensina as regras elemen­tar da gramática, uma a uma, como aliás os linguistas o vão fazendo com bons resultados[44]. 

Memórias?
62. Encontramo-nos aqui perante um caso de polissemia, o da utilização da palavra ‘memória’ nos contextos da informática e da neurologia; é necessário dizer uma palavra sobre o contraste entre es­tes dois sentidos (não exactamente ‘dois’). O que se escreveu mais acima sobre o electro-encéfalograma (§§ 56-57) pode ser transposto para os computadores. Com efeito, um engenheiro electrónico, com os seus aparelhos de reparação do hardware engatados num computador, pode analisá-lo quando um programa de software está em marcha, mas não pode saber através desses aparelhos que tipo de linguagem informática esse programa utiliza (no caso de admitir várias). Tal e qual como os neurologistas, pois. Em ambos os casos, o con­ceito de matéria de empréstimo é o de uma rede ‘material’ (neuronal num, fios eléctricos no outro), capaz de ser inscrita por escritas ou linguagens diversas; dum ponto de vista filosófico, dir-se-á que essas linguagens ou escritas são imotivadas em relação à matéria de em­préstimo em que são inscritas, não lhe exigindo mais do que uma disponibilidade à inscrição[45]. São as suas regras sintácticas que traba­lham nessas matérias de empréstimo. Mas de maneira completamen­te diferente. Porque, num dos casos, a memória é inscrita por apren­dizagem, e permanece como inscrição (química)[46] essencial às opera­ções da leitura textual, onde ela trabalha também em retiro. Pelo contrário, faz parte da positividade dos computadores enquanto tec­nologia electrónica, que os seus fios não sejam afectados, modifica­dos, inscritos duradouramente, pelo software após a sua passagem (o que seria um ruído infernal, em linguagem da teoria da informação). Se quiséssemos falar aqui de grafos, seriam os circuitos cons­truídos em pormenor pelo engenheiro do hardware. Um dos aspectos desta positividade, é que um computador adaptado aos alfabetos respectivos (latino, grego, cirilico, árabe, etc.) pode receber e tratar indefinidamente qualquer escrita alfabética, sem a aprender, sem ter memória dela, o que um cérebro humano não consegue, é evidente. O computador não lê os textos, só vê letras, mas a que ve­locidade!
  63. A autonomia do computador resulta das regras que lhe são dadas pelo software (heteronomia), mas esta heteronomia não é apagada, como na memória humana[47], ela permanece explícita como condição das operações a prosseguir. É por isso que parece difícil falar de ‘memória’ ao nível do hardware (RAM). É o software que conseguer armazenar memória, em discos, bandas magnéticas, etc., portanto sempre separada do software ‘actual’ (à maneira das bibliotecas, “toda a memória do mundo”: trata-se de um verdadeiro armazém, o que justamente a memória ce­rebral, jogando de forma química retirada, não é de forma ne­nhuma), ainda que se trate  de ‘representação’ de sintagmas ou de operações sintácticas determinadas; mas neste último caso tudo tem que ser rigorosamente explicitado pelos linguistas, com os limites ac­tuais destas disciplinas, no que respeita à relação teórica e prática entre frase e texto. Enquanto que nós, lemos e escrevemos sem saber­mos linguística nem semiótica. Desta autonomia tão nova do com­putador, poder-se-ia dizer que se trata de uma ‘autonomia progra­mada’. Há aí aleatório? Sem dúvida, senão não seria autonomia, não seria operatório; mas é um aleatório ‘programado’ no software de modo a que os ‘dados’ sobre os quais as operações serão feitas possam tornar-se adequados às ‘regras’ do programa, de modo a que isso não falhe. Já que ele tem que fazer o que o operador pretende, não o que ele, computador, quisesse.

O computador escuta mal
64. Ponhamos enfim uma última questão, a que indicámos como d) no § 49. Até hoje, no esforço para imitar os sistemas neuro­lógicos, os computadores ‘trabalham’, mas não conseguem ‘escutar’: as nossas mãos pressionam os teclados, os nossos olhos lêem écrans e impressoras, mas eles não conseguem, apesar dos esforços neste sentido desde há numerosos anos, compreender as nossas vozes: seria preciso que os nossos fonemas tocassem directamente os octetos correspon­dentes, como fazem os toques dos dedos nos teclados. A dificuldade reside essencialmente em que as nossas vozes não produzem fonemas (‘iguais’ em todas as bocas), mas sons que mudam segundo os nossos timbres e humores: é que os fonemas não são senão as diferenças entre os diferentes sons das nossas vozes, são essas diferenças que são as ‘mesmas’, ‘iguais’, em cada uma das vozes duma mesma língua (é uma das grandes lições da linguística saussuriana). Há aliás uma dificuldade semelhante com os scanners ao passarem as diferentes tipografias e nomeadamente as nossas diferentes ‘letras’, quando es­crevemos com caneta. Enquanto que os nossos cérebros aprenderam a distinguir os fonemas nas vozes empiricamente diferentes que os tra­çaram, nas diversas letras que as mãos grafaram: é isto a que Saussure chama ‘significante’, essas di­ferenças que se repetem, como condição necessária de entendimento. Ora, a única maneira de um computador electrónico escutar (§ 48 b) é em alta fidelidade: os aparelhos acústicos telefónicos e de música (ou os scanners) – ao contrário dos teclados que são indiferentes aos dedos que possam tocá-los, a impulsão eléctrica sendo sempre a mesma – restituem todas as particularidades ou singularidades das vozes e timbres de cada um (ou das escritas à mão), sem que seja possível destacar um núcleo empírico ‘comum’ a todos, porque este co­mum não é justamente empírico, segundo a leitura husserliana que Derrida fez, não identificável portanto pela corrente eléctri­ca. Com efeito, as diferenças entre os sons (empíricos) ou entre as grafias (empíricas) não são nem sonoras nem visíveis. É aí, parece-me que se joga, hélas!, a resistência aos esforços dos engenheiros electró­nicos para conseguirem que os computadores compreendam direc­tamente a voz dos useiros (ou então a sua escrita pessoal).




[1] Tradução do 10º capítulo de Belo, 2007.
[2] P. Somville, Essai sur la Poétique d’Aristote, J. Vrin, 1975, p.46, citando R. Mac. Keon, Critics and Criticism: Ancient and Modern, Chicago, 1952, pp. 152 ss. (reenviando ao cap. VII do “Système des beaux-arts” de Alain, vol. II das suas Œuvres Complètes, Pléiade, pp. 237-240).
[3] Salvo recentemente o de ‘linguagem’, que em rigor só convém à oralidade, à sua ‘língua’.
[4] O que não pode dizer-se sem mais em relação aos cérebros humanos, já que estas inscrições não são as únicas a serem recebidas por eles, mediante transformação em electricidade e química: as pessoas e as coisas também são captáveis (visual, auditiva e tactilmente) ‘em directo’, pela sua ‘face’, aquilo a que os gregos chamavam eidos, o que é visto, visado (§ 13).
[5] Tal como os provérbios, por exemplo, os poemas anteriores à escrita eram ‘inscrições’ orais, quer dizer, textos fixados no seu ritmo de modo a serem repetidos tal e qual nos diferentes contextos (à semelhança do escrito). Eram civilizações com técnicas de memória muito desenvolvidas, que não se devem pois opor sem mais às sociedades com escrita. As definições e outros enunciados de teoremas, por exemplo, funcionam da mesma maneira: são também para repetir tal e qual, para evitar que mudem quando muda o contexto.
[6] No sentido de S/Z de Barthes, por exemplo, ou da leitura dos mitos ameríndios por Lévi-Strauss (1964-71).
[7] O que nem o fonema nem a letra possuem: eles não significam nada por eles mesmos, retirados do campo da significação e da comunicação.
[8] “= é ‘igual a’ ” , “+ é ‘a operação de adição cujas regras são tais e tais’ ”, etc. Para os algarismos: “3 é ‘três’ ”, mas esta palavra é um adjectivo numeral polissémico como por exemplo, em 1) três maçãs que vou comer, 2) três dos meus amigos, 3) três sonhos que tive, 4) três filmes que vi, 5) três países com políticas convergentes, 6) as três pessoas da Santíssima Trindade, e assim por diante, em que  parece que ‘três’ não tem sempre o mesmo sentido, nem que se trata tão pouco de ‘seis sentidos separados entre eles’, que não é susceptível de uma operação de multiplicação ‘três vezes seis’, dando ‘dezoito entes’, ‘entidades’, ‘coisas’ (exemplo adaptado de C. Castoriadis, “ Science moderne et interrogation philosophique”, Enc. Universalis, vol.17, p.71).
[9] “A conquista da Europa pelos algarismos ditos árabes (um erro, já que são indianos) começa em Toledo, cerca de 1143. O famoso zero é um deles, mas como mostra Schärlig, não é então mais importante do que os outros. A verdadeira revolução trazida por estes algarismos é que permitem as quatro operações por escrito, enquanto que as cifras romanas, que eles substituem pouco a pouco, necessitam da utilização de ábacos e fichas. Os primeiros lugares de propagação são a Toscana, a partir do século XIV, e a Alemanha no século seguinte. Desde esse momento, a invenção da imprensa suscita livros de aritmética, enquanto que até esse momento, só se dispunha de manuscritos, primeiro nessas duas regiões e a pouco e pouco em toda a Europa. E em 1585, quando um flamengo inventou as fracções decimais, a conquista termina” (recensão em castelhano de Alain Schärlig, Les chiffres arabes à la conquête de l'Europe (1143-1585), PPUR, 2010, na Teia).
[10] Este não é senão um entre os numerosos sistemas possíveis; um outro é o sistema binário dos computadores, jogando apenas com 1 e 0 (§ 36n).
[11] Para os exemplos simples que dou; não creio que estes raciocínios sejam infirmados pelas matemáticas modernas, que ignoro.
[12] E aí está a condição para que essas ciências sejam susceptíveis de técnica, o que não é o caso se a matemática utilizada for de tipo estatístico.
[13] Sem dúvida, a Física desenvolveu-se ao encontrar equações mais gerais permitindo unir campos antes isolados na clausura das equações. Isto não me parece infirmar a demonstração que estou a tentar. Poder-se-ia aliás dizer-se que o princípio de discernimento das etapas da história da física é, por um lado, o do estabelecimento de novas equações e portanto de novas regiões físicas, e por outro lado, o do estabelecimento de equações mais gerais integrando e unificando algumas regiões físicas cujas equações se revelam ser casos particulares daquelas que se acabam de descobrir (Newton em relação a Einstein, por exemplo célebre). 
[14] Como o mapa geográfico é e não é o território : sem o mapa da Europa, não saberíamos nada dela.
[15] Como se constrói ‘eidético’, a partir de eidos.
[16] Ver L. Gervereau, Voir comprendre analyser des images, La Découverte, 1997.
[17] A articulação do cinema e da banda desenhada é paralela à das narrativas em sequências e capítulos, o que se chama narratividade, já do nível do discurso, acima do da frase.
[18] “ Chine-Littératue”, Enc. Universalis, vol.4, 1974, pp. 310-311 (ver o 2º texto).
[19] Belo, 1991b, § 24.
[20] A da Antiguidade greco-romana e a nossa.
[21] Bernard Stiegler, “L’image discrète”, in J. Derrida e B. Stiegler, Écographies, de la télévision, Galilée-INA, 1996, p. 168, que cita A. Bazin (“a objectividade do objectivo” da fotografia) e R. Barthes (“isto sucedeu”, noema intencional da fotografia). Já não é o caso da imagem numérica, que, tornando-se, por assim dizer, fotografia desenhada, retorna à tradição com que a química da luz tinha rompido.
[22] Mesmo as máquinas automáticas precisam de vigilantes.
[23] O que pode ser verdade inclusive da matemática: uma barragem, uma ponte, serão tanto mais belas quanto o seu cálculo tiver sido matematicamente económico. Se bem me lembro, e me fôr permitido, tive uma verdadeira emoção estética numa aula sobre estruturas das pontes, em que Edgar Cardoso provou com equações como a sua linha de influência (curva matemática dos momentos das forças às quais serão submetidos) coincide com a sua flecha, a curva da deformação elástica do seu eixo.
[24] É a independência entre estes dois mundos que pede um sistema de adaptadores com um código, proporcionando “uma significação única a cada unidade elementar dos dois mundos” (ibidem).
[25] Poderia parecer que se trata das ‘matérias de empréstimo’, mas de facto trata-se das próprias inscrições enquanto relativas à vida das gentes (da cena da habitação que as artes jogam na cena da inscrição).
[26] F. Belo, 1994.
[27] Aristóteles detesta a poesia ‘lírica’, os sentimentos e experiências pessoais dos poetas.
[28] Coerência do conjunto e do seu contexto, evitando absurdos e prodígios sobrenaturais.
[29] La vérité en peinture, Flammarion, 1978.
[30] É o que a publicidade macaqueia, horrível de ouvir.
[31] Nem mercadorias nem dinheiro; deste apenas os números, consoante condições institucionais exteriores à transmissão (notas ou cheques não são transformáveis em corrente eléctrica).
[32] Em português, como nas outras línguas latinas, deve-se dizer ‘médias’, e não à americana, já que não há nenhuma regra de transformação de palavras latinas em inglês (o cúmulo do colonialismo é aqui o brasileiro ‘mídia’).
[33] Análogo ao que seria uma ameaça de cortar a electricidade.
[34] A. Gorz, 1980, e F. Belo, 1987, pp. 327-44.
[35] Aristóteles fez dela um termo filosófico que os latinos traduziram por ‘matéria’.
[36] É pois sobretudo o organismo inteiro que é uma máquina (com regras que jogam para fazer face ao aleatório), e não o cérebro sozinho. Teria sido preciso pôr aspas em “cérebro” no seguimento do texto para o assinalar.
[37] O que se deixa aqui de lado, por razões de economia do próprio debate, terá no entanto relação com as dificuldades que se encontrarão mais adiante.
[38] E supondo um logicial tipo Windows (de que não sei nada).
[39] Um pouco como os sinais de Morse; eram esses octetos que se inscreviam nos cartões perfurados na época dos antigos computadores.
[40] 2 é 1+1=10, 3=11, 4=100, 8=1000, 32=100000; quer dizer, 2n = 1 seguido de n zeros. Em seguida, 33=100001, 34=100010, 35=100011, etc.
[41] Presumo além disso que todas as outras operações com números são convertidas em adições, em correspondência com a sua definição aritmética.
[42] Tal como aliás pode jogar com desenhos, fotografias, etc. segundo processos que desconheço.
[43] Isto torna-lhe muito difíceis as tarefas de tradução de textos de tipo literário ou de língua corrente, e é isso a maior infelicidade, porque a tradução automática permitiria resistir muito melhor ao domínio imperialista da língua inglesa, sem perder as suas vantagens enquanto língua internacional.. 
[44] Penso nomeadamente nos grandes quadros de distribuições sintáctico-semânticas elaborados pela equipa de Maurice Gross.
[45] Quer dizer, e isto tem relação com o conceito de máquina proposto logo no início, que nem a biologia do cérebro nem a rede electrónica do computador determinam (no sentido da causalidade mecânica clássica) os fluxos que os percorrem. É a importância do motivo da inscrição: esta vem de fora, impede a oposição entre interior e exterior no funcionamento dos ‘dispositivos’, cerebrais ou electrónicos.
[46] A electricidade neuronal é feita de iões de sódio e potássio, o que a presta a reacções químicas nas sinapses, ao contrário da electricidade industrial, feita de electrões.
[47] A memória da nossa língua só nos serve porque as vozes dos outros que no-la ensinaram se apagaram, como condição da autonomia da nossa fala.

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